11:14Falácias sobre a literatura

por Michel Laub

 

1. “A ficção melhora a vida das pessoas.” — Duvido que ler Céline ajude um funcionário de banco a trabalhar com mais eficiência, arrumar uma namorada ou parar de beber.

2. “Há muita inveja no meio literário.” — Sim (dizem), mas com os amigos é o contrário. Torcemos para que seus livros sejam bons, porque dilemas éticos dão certa preguiça: em algum momento precisaremos decidir se os elogiamos hipocritamente, talvez em público, ou deixamos a amizade avinagrar.

3. “Quem lê best-sellers acaba passando para obras mais complexas.” — Só se fizer um esforço que no começo parece inútil, o que a maioria não está disposta a fazer. Por que enfrentar textos que soam árduos e/ou incompreensíveis? Só porque alguém –quase sempre uma pessoa mais velha, solitária, pobre e sem carisma– diz que haverá uma recompensa ao final?

4. “O maior pecado de um escritor é ser chato.” — Contrariando o item anterior, há um prazer específico, que pode ser intenso e viciante, em emergir de um monólogo introspectivo de 900 páginas –às vezes em prosa opaca, sem enredo, humor ou concessões– como um sobrevivente.

5. “Tudo já foi dito.” — Pegue alguns dos temas que estão por aí –polícia moral de Twitter, por exemplo– e conte quantas boas histórias foram publicadas a respeito.

6. “Todos os modos de dizer já foram tentados.” — Assim como cada pessoa tem um timbre de voz, cada autor é capaz de ser bom ou idiota à sua maneira.

7. “A linguagem é capaz de tudo.” — Apenas dentro dos próprios limites. Um cheiro só pode ser descrito com metáforas e associações, que não são e nem mesmo definem o cheiro em si.

8. “O texto ficcional é autônomo.” — Dá para acreditar nisso, como no Papai Noel da isenção, mas a referência de toda escrita é a memória do seu autor, que não necessariamente é a memória de coisas vividas. Só uso a palavra “casa” porque sei o que é uma casa –já morei numa, já entrei em outras tantas, já vi fotos e filmes e ouvi relatos a respeito–, e isso também é autobiografia.

9. “Não há muitos livros sobre futebol no Brasil.” — Frase repetida a cada lançamento de obra sobre o tema.

10. “Há poucos estudos acadêmicos sobre literatura contemporânea.” — Frase repetida a cada notícia de estudo do gênero.

11. “Há cada vez menos espaço para resenhas.” — Ok se desconsiderarmos a invenção da internet.

12. “Escrever contos exige tanto sacrifício quanto escrever romance.” — Sei que é um gênero difícil e tal, mas estou usando critérios objetivos: os anos de dedicação e concentração, os casamentos terminados, os remédios para a lombar.

13. “O escritor é um trabalhador como qualquer outro.” — Diga isso para um cortador de cana.

 

14. (A falácia oposta, de que se trata de um habitante das esferas elevadas da compreensão humana, é ainda pior: no mínimo, porque gera metáforas do tipo artista no fio da navalha/no olho do furacão/à beira do abismo.)

15. Frase de Henry James, se não me engano, que poderia ser a resposta à preferência atual –muito apreciada em cursos de escrita criativa– por concisão, contenção e exatidão: “Adjetivos e advérbios são o sal e o açúcar da literatura”.

16. (Dá para dizer algo parecido contra outras regras da moda: as que vetam personagens escritores, narradores em primeira pessoa, metalinguagem, capítulos curtos, romances políticos e enredo policial, livros despretensiosos ou que se levam a sério, autores que mendigam popularidade fazendo listinhas.)

17. (Queria aproveitar para falar umas verdades sobre a crítica, os cadernos de cultura, as políticas governamentais de incentivo ao livro, as editoras, os tradutores, os revisores e preparadores, sem contar os leitores e alguns colegas e também meus inimigos e seus familiares, mas o espaço está terminando e melhor deixar para outra).

18. Raduan Nassar numa entrevista à “Veja”, 1997, resumindo a importância do que foi dito nos parágrafos acima: “Eu gosto mesmo é de dormir (…). É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita o corpo e a cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono”.

 

*Publicado na Folha de São Paulo

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