19:12Fragmentos de um discurso

de Graciliano Ramos

 

Senhoras, Senhores,

Vejo-me em situação difícil – e não poderei representar convenientemente este papel. Ler um discurso é ação temerosa: faltam-me elementos para semelhante gênero.

Realmente, se é fácil abraçar um camarada na livraria ou no jornal, dizer-lhe palavras de agradecimento e oferecer-lhe préstimos diminutos, à rua tal, número tanto, acho empresa considerável reunir essas parcelas de gratidão, dar-lhes forma literária, datilografá-las, pronunciá-las com os gestos adequados, em pé, junto a uma mesa.

Fui eu, meus senhores e amigos, esse novelista pescado no sertão de Alagoas por umas cartas que Rômulo de Castro me enviou, de 1930 a 1931, em nome de Schmidt. Desde então ocorrências de vulto me atrapalharam. Seria melhor que eu tivesse continuado a envelhecer na cidadezinha poeirenta, jogando o xadrez e o gamão, tratando dos meus negócios miúdos, ouvindo as intermináveis arengas das calçadas, refugiando-me à tarde na igreja matriz, enorme, onde fiz dezenove capítulos de São Bernardo. Seria melhor. Infelizmente não me foi possível orientar-me. Os acontecimentos forçaram-me a deslocações imprevistas.

[…] tive de escolher um ofício. Caí na literatura: todas as outras portas se fechavam. […]

E aqui estou, depois de muitas quedas e de pequeninos saltos, olhando as paredes do cemitério bem próximo. Nunca tentei elevar-me algumas polegadas. É certo que estraguei papel e tinta, mas procedi assim por motivos de ordem particular. Um vício como outro qualquer. E esforcei-me por escondê-lo.[…]

Deixei o meu povoado cambembe, meti-me em cavalarias altas. Enchi-me de fumaças, vim morar perto da rua do Catete, simulei autoridade e, perigando em conversas inacessíveis ao meu entendimento, encerrei-me grave num silêncio razoável. Escondi uma reles tragédia, cuidadoso, envelheci, afastei-me. E, neste fim de vida melancólico, vejo-me com muitas das pessoas que, em momentos difíceis, me ampararam e disseram a palavra conveniente. Sem esse amparo e sem essa palavra, não estaríamos hoje aqui. […]

É preciso descobrirmos um motivo para esta reunião. Penso, meus senhores e amigos, que a devemos à existência de algumas figuras responsáveis pelos meus livros – Paulo Honório, Luiz da Silva, Fabiano. Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos, porque não sou Paulo Honório, não sou Luiz da Silva, não sou Fabiano. Apenas fiz o que pude para exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. É possível que eu tenha semelhança com eles e que haja, utilizando os recursos duma arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios, conseguido animá-los. Admitamos que artistas mais hábeis não pudessem apresentar direito essas personagens, que, estacionando em degraus vários da sociedade, têm de comum o sofrimento. Neste caso aqui me reduzo à condição de aparelho registrador – e nisto não há mérito. Acertei? Se acertei, todo o constrangimento desaparecerá. Associo-me aos senhores numa demonstração de solidariedade a todos os infelizes, que povoam a terra.

 

*O texto acima é parte do discurso de Graciliano Ramos no jantar de comemoração dos seus 50 anos, em 1942, no restaurante Lido – Rio de Janeiro – RJ

 

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