17:55Vem o dia, e o fantasma de meu pai não me aparece

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira

 

Era real: uma menina. Olhos azuis. Era real: um menino. Olhos castanhos. Exatos três anos os separam. A menina é mais velha. Quando o médico a arrancou da barriga da mãe, agarrei-a enrolada em muitos panos. Entre os trapos do hospital, uma menina. Minha filha. Assisti ao parto escondido atrás dos meus medos. Acho que um hospital é onde as coisas sempre dão erradas. Quando a embalei, descobri que era pai. No banho, não consegui segurá-la. A enfermeira me socorreu. Tinha receio de quebrá-la. Depois, veio o menino. Na primeira fotografia, ele me encara. Olha-me de frente, no meio dos olhos espantados, como se buscasse um amigo na escuridão. Era pai pela segunda vez. Sou pai duas vezes. Um pai diferente para cada filho.

Nasci na roça. Em casa, de parteira. Noite de chuva, relâmpagos e trovoadas. Debati-me três dias até romper exausto por entre as pernas da mãe. O cesto de milho: berço improvisado. A mãe conta que o pai desaparecia dias antes do parto e só voltava dias depois do primeiro berro do filho recém-nascido. A parteira que se virasse para que a vida não escorresse pela sanga ao lado do paiol. Não lembro quando vi o pai pela primeira vez. Não há nenhuma fotografia do primeiro encontro. Nem do último. Quando será o último? Engraçado: percebo agora que não tenho nenhuma fotografia sozinho com ele. Não somos íntimos nem mesmo no desbotado papel fotográfico. Nunca estava por perto. E quando estava, éramos estranhos a esbarrar pela casa de madeira.

Levamos a menina para casa. Na saída da maternidade, algumas pessoas esboçavam sorrisos. Despedimo-nos dos vigias e atendentes. Fazia um sol tímido no inverno curitibano. A toca enorme de lã aumentava a cabeça pequena. Dirigi com muito cuidado. Levava minha primeira filha. Mostramos a casa, os livros, os móveis, os vazios. Escancaramos nossa intimidade e nossos medos. Ela olhava tudo com genuína curiosidade. Demarcava o território. Hoje, aos sete anos, move-se com desenvoltura. Tornou-se íntima do deserto que habita em todos nós. Depois, trouxemos o menino. Era feio e desajeitado. O cabelo tinha rumo incerto. A biruta do aeroporto diante da tempestade não lhe fazia inveja. Aos poucos, tornou-se bonito. E muito esperto. Em nada lembra aquele bebê saído às pressas da maternidade em pleno surto de uma gripe estranha. A menina sempre fora linda.

Este homem que entra aqui em casa é meu pai. Seria um estranho se na minha certidão de nascimento seu sobrenome não fosse a única herança. Não lembro desde quando é meu pai. Um dia, dei-me conta de que havia um homem maior e mais forte entre nós. Foi embora. Depois, voltou. Zanzou pela casa como um fantasma íntimo dos nossos dias. Às vezes, trazia um brinquedo de plástico. Ou restos da pastelaria ao lado da banca de flores no centro de Curitiba. Mas o que nunca deixou de nos trazer foi um indestrutível cheiro de cachaça. E uma faca afiada escondida na gaveta da pia.

No fim da tarde de sexta-feira, meu filho fez seu primeiro gol. Não foi bonito. Meio sem querer. Correu e pulou feliz pela quadra. Abraçou um amiguinho aos rodopios. O primeiro gol aos quatro anos. Eu estava lá na arquibancada vazia. Ele levantou em minha direção o polegar direito em sinal de felicidade. Retribui com entusiasmo. Só era importante para nós. Duas mães conversavam sobre uma festa. Não viram aquele primeiro gol. Outras crianças corriam pelo colégio à espera dos pais atrasados. Minha filha se divertia num joguinho eletrônico. Tenho dois filhos. Estou sempre por perto — tentativa de me tornar um estranho menos estranho.

É sábado à noite. Meu filho dorme no carro. Chegamos a Campo Largo. Pretendo fazer um churrasco. Em volta da churrasqueira, estamos os três: eu, meu filho e meu pai. No sofá, a mãe segue amontoada, retorcida pelo câncer que a destrói lentamente. Cortei rodelas gordas de tomate. O fogo ilumina o início da escuridão. Meu filho acompanha meu pai pela casa. Conversam pouco. Está contrariado. Não quer ficar. Quero ir embora, esbraveja. Sem argumentação possível, carrego-o de volta.

Tem dor de ouvido ou medo de fantasma?

 

 

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)

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Uma ideia sobre “Vem o dia, e o fantasma de meu pai não me aparece

  1. Airo Zamoner

    Talento inegável de nossa literatura, Rogério Pereira, mostra a cada texto, a cada linha, a cada palavra como se faz literatura. Longe da pena, mas nem tanto, é aquele batalhador incansável que acredita que é possível se fazer sempre alguma coisa mais, em prol da cultura, da literatura, da palavra. Parabéns caro Rogério por mais este belíssimo texto.

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