15:02Humor fino e ironia implacável

Do caderno de Cultura do jornal O Globo, em reportagem de Leonardo Cazes:

 

– Reedição do livro ‘Comendo bolacha maria em dia de são nunca’, do catarinense Manoel Carlos Karam, morto em 2007, joga luz sobre uma obra pouco conhecid

– Escritor influenciou nomes como Joca Reiners Terron e Marçal Aquino

 

 

No final dos anos 1970, o escritor Joca Reiners Terron, ainda um garoto, recebeu pelo correio uma edição do fanzine curitibano “Zéblue”, produzido por membros de uma banda de rock chamada A Chave. Entre os textos publicados estava um que ele reencontraria no início dos anos 2000. Era um dos contos do escritor catarinense radicado em Curitiba Manoel Carlos Karam. O texto fazia parte do livro “Comendo bolacha em dia de são nunca”, lançado pela primeira vez em 2001 pela editora independente Ciência do Acidente, de Terron. A obra, esgotada e difícil de ser encontrada até mesmo em sebos, é relançada agora pela editora curitibana Arte & Letra.

Karam, morto em 2007 vítima de um câncer no pulmão, fez parte de uma geração de escritores brasileiros alinhada aos pós-modernistas americanos e franceses entre as décadas de 1960 e 1980, junto a Valêncio Xavier, Carlos Sussekind, Zuca Sardan, entre outros. Em um momento em que o país vivia a efervescência da Tropicália e do Cinema Novo, as experiências do grupo ficaram mais restritas à cena independente. No entanto, isso não impediu sua influência sobre a geração seguinte, como conta o escritor e roteirista Marçal Aquino. Ele lembra que conheceu a obra de Karam em 1985, quando seu primeiro livro, “Fontes murmurantes”, caiu nas suas mãos.

— Fiquei absolutamente encantado com o nível de liberdade com que ele tratava as (im)possibilidades do real e seu flerte original com o absurdo. Anos mais tarde, eu o conheci em Curitiba. Grande fã de quadrinhos que era, ele foi o primeiro a sacar que minha literatura tinha muito mais a ver com gibis do que com cinema — afirma Aquino, em entrevista por e-mail.

Classificar “Comendo bolacha em dia de são nunca” como um livro de contos inclui uma boa dose de riscos. É difícil precisar se os textos reunidos são contos, crônicas ou até, em alguns casos, prosa poética. A narrativa é fragmentada, recheada de frases precisas e desconcertantes. Aquino chama a atenção para “o humor fino, a ironia implacável e o gosto obsessivo pelo detalhe”.

Textos inéditos em breve

A Arte & Letra também prepara, para o segundo semestre, outro relançamento de Karam, o livro “Pescoço ladeado por parafusos”. O projeto dos sócios e irmãos Frederico e Thiago Tizzot é editar todos os trabalhos do escritor que estejam fora de catálogo. Tudo começou quando Thiago foi ter aulas de violão com Bruno Karam, filho de Manoel Carlos. Como os direitos pertenciam à própria família, não houve grandes dificuldades para que chegassem a um acordo. Bruno afirma que o desejo de seu pai sempre foi de que o seu trabalho circulasse.

— Em uma entrevista, ele falou: o autor tem que ser primeiramente um egoísta, tem que gostar do que fez para que outras pessoas possam gostar também — diz Bruno. — Uma vez, meu pai andava na rua e um cara o reconheceu e gritou um texto dele. Era isso o que ele queria da sua literatura.

Karam deixou trabalhos inéditos que devem ser lançados ainda neste ano. A ideia do editor Paulo Sandrini, amigo do escritor e responsável por seus manuscritos, é publicar em 2013 “Meia dúzia de criaturas gritando no palco”, uma obra com três textos inéditos escritos para o teatro. Segundo Sandrini, “a edição tem o intuito de marcar a dramaturgia experimental de Karam, que escreveu cerca de 20 peças na década de 1970”.

— Ele era uma pessoa com uma energia invejável para escrever, escrevia por vezes quatro livros ao mesmo tempo. Entendia muito, como poucos que conheci, de cinema, música experimental, de jazz e até pop — ressalta Sandrini.

Leia “Embaraço na garganta seguido de jogo para um”, conto de “Comendo bolacha maria em dia de são nunca”:

“O meu sequestro aconteceu como eu imaginava que fosse um sequestro e não como um sequestro poderia acontecer.

Um automóvel cruzou diante do meu carro e parou, fui obrigado a usar o freio bruscamente para evitar a batida.

Enquanto vivia o impacto do susto, três homens saltaram do automóvel e me arrancaram do carro, vi de relance armas nas mãos dos homens.

Eles me jogaram no chão na parte de trás do automóvel deles, dois homens colocaram os pés sobre as minhas costas e eu fiquei com o rosto contra o chão, eu vi os homens mas não saberia descrevê-los.

O carro rodou durante muito tempo, mais de uma hora ou mais de duas horas, não sei, e quando parou fui tomado pelo medo, tive a impressão que o medo estava chegando atrasado.

Colocaram um capuz que bloqueou boa parte dos meus sentidos, tiraram o capuz quando eu já estava amarrado a uma cadeira de frente para a parede, os joelhos tocando na parede de madeira, meu rosto a poucos centímetros da parede, de castigo virado para a parede.”

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/humor-fino-ironia-implacavel-8789643#ixzz2X9qQBRrL
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