16:36Diário do fim

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

 

17 de junho de 2013

Chegamos cedo ao Erasto Gaertner — o hospital para cancerosos em Curitiba. É segunda-feira. Chove muito. Manifestações ganham força por todo o país. Sinceramente, não sei o que a multidão reivindica. Estou à margem do mundo. Arrasto a mãe pelos corredores atulhados. Vamos à quimioterapia. À entrada, em pé, o homem das três segundas-feiras anteriores. O caninho enfiando no nariz não me deixa esquecê-lo. Veste os mesmos boné e jaqueta de sempre. A jaqueta tem a marca Hyundai às costas. Dizem que produz bons carros. No balcão estendo a carteirinha amarela da mãe. Seria possível atendê-la agora? Preciso estar no aeroporto por volta do meio-dia. A informação não surte qualquer efeito. A atendente responde que o medicamento ainda não está disponível. Mas é apenas uma injeção, reclamo. Não há o que fazer a não ser esperar. Espero ao lado da mãe. Tento ler O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati. Havia anos, protelava a leitura deste livro.

 

Uma voluntária vem falar comigo. Nos conhecemos há três sessões de quimioterapia. O seu marido morreu de câncer. Agora, tenta ajudar os que estão na fila para morrer. Serve chá quente pelos corredores. É simpática. Diz que vai verificar sobre o medicamento. Explico-lhe que preciso viajar. Sai por um corredor a passos rápidos. Volto para O deserto dos tártaros: “Aos poucos a fé se enfraquecia. Difícil é acreditar numa coisa quando se está sozinho e não se pode falar com ninguém. Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso que causa a solidão da vida”.

O medicamento chega. A mãe ganha uma agulhada na nádega enrugada. Dói. Ela se contorce toda. Uma lagarta queimada na chapa quente. Levo-a para casa. Tomo o rumo do aeroporto.

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19 de junho de 2013

A chuva e as manifestações continuam. Chegamos novamente cedo ao Erasto Gaertner. É dia de consulta com o oncologista. Não conheço este médico. Eles, os médicos, sempre mudam. Só o câncer não vai embora. A sala de espera está lotada. O ar é pesado. Agora, leio Viagem ao fim da noite, do Céline. A viagem a Juiz de Fora foi boa. No trajeto, terminei a leitura de O deserto dos tártaros. Estou preparado para esperar. A consulta está marcada para as 10 horas. Se sairmos do hospital até o meio-dia, será uma vitória. Sou otimista. Carrego o livro nas mãos. Caminho de um lado para outro. A mãe está amontoada numa cadeira. Sempre acho que vai desistir. Lá fora, a chuva continua volumosa, indiferente ao nosso câncer.

Após duas horas de pé, desisto da leitura de Viagem ao fim da noite. Não há cadeiras disponíveis. O câncer é prejudicial à leitura. Na tevê, manifestações em várias cidades. Talvez seja uma boa ideia organizar uma passeata dos cancerosos do Erasto Gaertner. A marcha dos cancerosos. Reivindicações: mais cadeiras, mais médicos, chá menos doce, bolacha mais macia, tevê de 42 polegadas na sala de espera, menos dor. Os cadeirantes iriam à frente; os mancos logo atrás. Em seguida, aqueles que perderam uma parte do corpo (qualquer parte: dedo, olho, orelha, braço, perna). Os doentes em melhores condições iriam ao final, carregando cartazes e faixas: “Passe livre aos cancerosos”; “Chega de bolacha e chá. Queremos croissant”; “Dilma, olhai por nós”. Não daria muito certo. Cancerosos velhos, feios e estropiados não têm Facebook, nem twitter. Seria impossível mobilizá-los.

Retomo a leitura de Viagem ao fim da noite: “Era igual a uma chaga triste a rua que não acabava mais, conosco no fundo, nós, de uma calçada a outra, de um sofrimento a outro, rumo ao fim que nunca se enxerga, o fim de todas as ruas do mundo”.

Após quase cinco horas de espera, consigo com que a mãe seja atendida. Ela não consegue respirar. A traqueostomia expele uma gosma amarelada. O enfermeiro se comove. Ou finge. Passamos a mãe na frente de outros pacientes. No câncer, vale trapacear. A consulta dura menos de dez minutos. Do consultório, a mãe vai direto para a emergência. A respiração lembra um cachorro são bernardo obeso se afogando numa valeta. Enquanto a mãe é atendida, marco novas sessões de quimioterapia e exames de sangue.

Quando saímos porta afora a tarde vai pela metade. A chuva continua sem descanso. Em alguma parte do país manifestações se organizam. Levo a mãe para casa. No fim do dia, estarei novamente no aeroporto. Queda de avião é melhor do que câncer: mata na hora.

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21 de junho de 2013

A chuva continua. Chegamos bem cedo ao Erasto Gaertner. A consulta agora é no Gisto — o Grupo Interdisciplinar de Suporte Terapêutico Oncológico. A mãe tem muita dor. Quando cheguei de Londrina, ontem à noite, dei morfina para diminuir seu sofrimento. Ela dormiu. Mas acordou com dor. O Gisto é o melhor lugar do Erasto. É onde se tenta dar algum conforto aos pacientes. As consultas são demoradas e minuciosas. Quase paternalistas. A gente até chega a acreditar que dará certo.

Saímos do Gisto com uma longa receita. Preciso passar na farmácia. A chuva continua sem dó. Não tenho de viajar para nenhum lugar. Quando a mãe morrer, vou tirar cinco de férias.

 

*Publicado no site Vida Breve (vidabreve.com.br)

 

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2 ideias sobre “Diário do fim

  1. Amigo do Bangu

    Ainda bem que Rogério Pereira era um zagueiro sofrível quando tentou a sorte nos campos. Ganhamos um craque na pena. Parabéns.

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