8:48Terra em transe

por Ivan Schmidt

 

O movimento de protesto contra o aumento das passagens do transporte público assumiu proporção nacional ao ser disseminado pelas redes sociais. Estima-se em mais de 70 milhões os e-mails trocados entre manifestantes de todo o Brasil. Foi a primeira manifestação popular  depois que estudantes se cobriram de verde e amarelo e pintaram a cara, em ação determinante no processo de impeachment do então presidente Fernando Collor. Com lideranças (ainda) desconhecidas do grande público, abrigadas sob o amplo guarda-chuva do movimento denominado Passe Livre, milhares de pessoas foram às ruas para protestar pacificamente, embora em algumas oportunidades elementos provavelmente infiltrados apelassem para o vandalismo, sempre presente nessas ocasiões, suscitando a reação policial com igual ou maior intensidade.

 

No primeiro momento, o governador paulista Geraldo Alckmin (foi em São Paulo que os protestos começaram) referiu-se aos participantes como vândalos e baderneiros, mas nos últimos dias havia mudado o conceito e, diante dos exageros da tropa, proibiu o uso de balas de borracha. A manifestação realizada na última segunda-feira foi pacífica, apesar dos transtornos no trânsito com a ocupação das pistas da avenida Paulista, afinal, uma temeridade a julgar pelo número de hospitais na área.

 

A própria imprensa, a princípio, sem saber ao certo como rotular o movimento, nas edições do final de semana já havia tido o tempo necessário para consultar os universitários, digo, os especialistas (políticos, psicólogos e sociólogos) buscando cumprir o papel de informar. Exemplo dessa preocupação está na entrevista do governador Tarso Genro (RS) ao jornal Valor Econômico do dia 17.

 

Entre outras ponderações permitidas pela longa experiência político-partidária que o coloca entre os poucos intelectuais de seu partido (PT), que já viu de tudo na vida, o governador destaca que o estrato social que se manifesta hoje contra o aumento das tarifas “são os novos protagonistas políticos da juventude, vinculados a redes, aos serviços, ao subemprego, estudantes libertários, trabalhadores do comércio, jovens autônomos e também ‘semimarginais’, que buscam melhor qualidade de vida material, de lazer e de fruição cultural, que a nova sociedade consumista, ao mesmo tempo estimula e nega”.

 

Sobre a ação de vândalos em meio aos protestos, o governador frisou que “estes são uma minoria e o movimento não pode ser desautorizado nem descredenciado por isso”, ressalvando também o componente da inclusão das pessoas na sociedade de classes. Tarso analisou o movimento como “uma espécie de 1968 pós-moderno, capaz de proporcionar um conjunto de lutas anticapitalistas anárquicas que desembocarão numa saída autoritária ou ditatorial, de esquerda ou de direita, pois o mundo terá que ser rearrumado pela força, embora a maioria – e eu me incluo nela – não aceite nem queira isso”.

 

Professor de sociologia na Unicamp, Marcelo Ridenti, conhecido pesquisador da conjuntura político-social brasileira desde o golpe de 64, ouvido por O Estado de S. Paulo (16 de junho), revelou que mesmo sem dados de pesquisa é possível perceber o crescimento do número de jovens “mais ou menos intelectualizados, resultado de um aumento grande na conclusão do ensino médio e do aumento do ingresso no ensino superior, especialmente o privado”. Ridenti diz que isso acaba criando desconforto em muitos desses jovens, que são milhões pelo país afora. “Embora muita gente tenha concluído o colegial e entrado na faculdade, o lugar para os jovens no mercado é muito restrito. E quando conseguem uma colocação, acabam se sujeitando a condições de trabalho que não combinam com as promessas de ascensão social pelo estudo”, revelou, adiantando que “minha intuição sociológica é de que é menos a passagem de ônibus e mais a manifestação de desconforto dessa nova geração que não está encontrando um lugar muito claro na sociedade”.

 

Para o advogado José Garcez Ghirardi, professor da disciplina “Formação Político-Econômica do Estado de Direito Brasileiro”, na FGV/SP, em entrevista ao caderno Aliás do Estadão do último domingo, as imagens dos protestos em várias capitais, especialmente a capital paulista “ilustram as consequências da falta de diálogo efetivo que tem marcado a sociedade brasileira”. É bastante explícito ao lembrar que o discurso “do nós ou eles” que considera moralmente superiores as razões próprias, desqualificando de antemão as visões contrárias, “solapa o fundamento da democracia, que é justamente o respeito à pluralidade de visões de mundo. Se não há diálogo real, a violência se transforma em única linguagem possível”.

 

A nova dinâmica dos protestos também chamou a atenção de Ghirardi, para quem a mesma “tem a ver com a forma como estão se organizando as relações sociais hoje em dia”, e a escolha pontual do aumento das tarifas de transporte público como alvo do descontentamento: “As pessoas estão consumindo política, não produzindo política. Elas não se envolvem nos processos de negociação, nem têm participação efetiva nas tomadas de decisão. Quando vem um resultado – um produto – que elas não gostam, reclamam com enorme intensidade. Mas depois, na hora de construir, que é muito mais difícil, pois pressupõe articulação de interesses diferentes, não conseguem avançar”.

 

Manifestar-se contra o aumento das passagens de ônibus, segundo Ghiradi, foi uma decisão lógica, tendo em vista que “a questão do transporte público no País é calamitosa”, agravada pelo fato que “o atual governo fez uma opção pelo transporte individual. Isso está dado e, de novo, é fruto dessa crença de que a gente vai conseguir fazer a inclusão social pelo consumo”.

 

Juan Arias, correspondente brasileiro do espanhol El País, um dos jornais mais importantes do mundo, em artigo para o mesmo caderno apontou para uma faceta felizmente compreendida pelas autoridades responsáveis pela ordem, escrevendo que “não é preciso doutorado em sociologia ou psicologia para saber que, quanto mais violência for usada contra os jovens, maior será a violência de sua reação”.

 

Arias decerto redigiu o artigo sob o impacto das cenas de violência policial contra os manifestantes, incluindo vários profissionais da imprensa em serviço. Entretanto, não há de sua parte (e de ninguém em sã consciência) a menor reserva quanto à ação rigorosa da Polícia nos casos flagrantes de agressões gratuitas ao patrimônio público e privado, como ocorreram no Rio de Janeiro na segunda-feira e em São Paulo na terça, assim como em muitas outras cidades, com o registro de depredações, invasões, queima de carros e até saques em estabelecimentos comerciais.

 

Como em outras ocorrências, episódios dessa natureza acabam cedendo espaço e oportunidade a marginais, que infiltrados na massa aproveitam o clima emocional para destruir e roubar. Mas esse tipo de gente deve ser imediatamente identificado e preso. “Tarefa que a polícia brasileira é capaz de executar com uma mão nas costas”, admitiu Arias. Ele também tocou em pontos sensíveis desse novo contrato social, digamos, que a cidadania tenta enfiar na cachola dos pais da pátria: “Os governantes precisam entender que a maior exigência que os cidadãos fazem a governos que tenham gerado riquezas e diminuído a pobreza não é fascismo, mas vontade de melhorar o País”.

 

Raciocínio simples e direto que se amplia (ou se completa) na seguinte constatação: “Em suma, os jovens exigem dos governantes um país como o anunciado para os estrangeiros: rico em recursos naturais, com uma democracia plena, capaz de oferecer a seus cidadãos uma qualidade de vida, educação e saúde que faça jus à imagem que o País construiu de si”.

 

Um sintoma dessa democracia nascente, que nem a força dos nichos remanescentes da política de campanário que dominou a nação desde os tempos coloniais, foi visto pelo autor do editorial do Estadão de quarta-feira: “O lado bom das jornadas dos últimos dias, além do caráter geral pacífico das manifestações, foi a preocupação com o País. ‘Parem de falar que é pela passagem’, comentou um jovem. ‘É por um Brasil melhor’”.

 

Ou como ficou explícito no cartaz empunhado por um manifestante: “Desculpem o transtorno. Estamos mudando o País”.

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