6:59O sofá

Ilustração de Theo Szczepanski

 

por Rogério Pereira

 

A mãe mora num sofá. Ela está miúda, raquítica. O tempo e o câncer a murcharam. Mastigaram com lentidão e cuspiram um simulacro de mulher. Quando morávamos na floricultura, não podíamos esquecer de regar as flores. Morriam tísicas ao sol. Não adianta mais regar a mãe. O sofá é pequeno, mas espaçoso para o corpo que o habita. Quando acordo e desço a escada em caracol, ela já está ali, meio sentada, meio deitada. No sofá, a mãe consegue se contorcer, movimenta-se com certa agilidade. Sente-se em casa. O sofá é o seu lar; e o seu cárcere.

 

O sofá está diante da tevê. A distância é mínima. Pretendo colocar a tevê em cima do sofá. Assim, a casa da mãe terá uma tevê. E uma tevê é sempre indicada para passar o tempo. Se levasse a mãe e o sofá a uma exposição de arte contemporânea, comporiam uma instalação cujo título seria Passatempo ou A agonia do sofá. Na roça — onde a mãe passou parte da vida —, os troncos esturricados lembravam animais calcinados, fósseis de precários dinossauros. Depois do fogo, a lavoura ganhava vida. A mãe é um tronco de Krajcberg numa terra devastada.

 

A mãe faz todas as refeições no sofá. Portanto, nunca almoça fora. Mistura o pó hipercalórico ao leite integral. Coloca o visgo branco num invólucro plástico. A gosma desce por uma mangueirinha até a barriga da mãe. A mãe tem um buraco na barriga. Uma espécie de boca sem dentes. A boca verdadeira da mãe também não tem dentes. Acho que ela não se importa muito em comer pela barriga. Parece acostumada. Sobe no sofá com o invólucro plástico nas mãos. Toma cuidado para não derrubar o café da manhã. O equilíbrio é delicado. Sempre fecho bem a janela da sala. Um mínimo vento pode derrubar e quebrar a mãe. Pendura a marmita pegajosa num prego na parede. Eu coloquei o prego. Sempre que posso, ajudo a mãe. Não sei fazer muitas coisas. E o que sei fazer tem pouca utilidade. Ela senta no sofá e espera a refeição descer pela mangueirinha até a boca sem dentes na barriga. A boca sem dentes na barriga da mãe se chama jejunostomia. O café da manhã, o almoço e o jantar são sempre iguais. Para a mãe, alimentar-se é apenas uma sina.

 

O sofá foi comprado numa dessas lojas populares — Casas Bahia, Magazine Luiza. Lugares onde os móveis — assim como a vida — não foram feitos para durar. O sofá é feio. Não tem o design do Francesco Binfaré. É marrom com cobertura bege. Lembra um deformado sorvete napolitano. O tecido parece camurça. A mãe trouxe o sofá da casa de madeira. Agora, o sofá está na casa de concreto. O túmulo da mãe será de concreto. Caso o sofá seja enterrado junto com a mãe, estará acostumado à frieza do cimento.

 

Na casa velha, tivemos vários sofás. Todos bem vagabundos. De uma napa desprezível. Um furinho qualquer em pouco tempo se transformava num rombo. A mãe colocava um pano sobre o buraco. Quando alguém sentava bruscamente, era levado para o País das Maravilhas. Quando chegava visita, um dos filhos sentava no buraco do sofá. A visita ficava na ponta. Nenhuma visita caiu no nosso precipício doméstico.

 

Às vezes, visito a mãe no sofá. Sento ao seu lado. Eu sempre afundo. O sofá é molenga. A mãe não afunda. O corpo da mãe flutua no mar de sal. Um lambari moribundo no Mar Morto. Meu filho me pergunta quem matou o Mar Morto. Respondo que já nasceu morto. A mãe não deixará testamento. Não sei o que fazer com o sofá. Não é uma boa ideia colocar fogo na última morada da mãe. Se ela quiser, levarei o sofá ao cemitério. Não é pesado. Mas pesa bem mais que a mãe. Não teremos dificuldade de carregar o caixão da mãe. Seu corpo é paina de pandorga que já não alça mais voo.

 

O sofá é de dois lugares. É pequeno e engraçado. Não tem teto, não tem nada. Só a mãe pode entrar. A mãe mora no sofá. Às vezes, olho pro sofá e não vejo a mãe. Mas ela está ali, em algum lugar. A mãe e o sofá se dão muito bem. Ficam o dia todo juntos. O sofá tem o contorno do corpo da mãe. A mãe carrega as listras fininhas do tecido do sofá na pele. O sofá é o melhor amigo da mãe. Eu não gosto do sofá. Mas não posso dizer isso. Não é um bom momento para preocupá-la com assuntos banais. Já decidi: quando a mãe morrer, o sofá vai embora também.

 

Não serei seu próximo morador.

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