8:07O visitante indiscreto

Ilustração: Theo Szczepanski 

por Rogério Pereira

 

Então, você voltou. Não estava com saudades. Cheguei a pensar que não voltaria. Sou mesmo um ingênuo otimista. Te acho uma companhia desagradável. Detestável. Não sei muito bem como me comportar na tua presença. Às vezes, tento ignorá-lo. Mas é impossível. Desde a tua primeira chegada, vejo-me um tanto perdido. São dois anos. Nunca imaginei que dois anos se transformariam num tempo tão comprido, longo, inacabável. São tempos difíceis, de seca, enchentes, pragas. A lavoura dizimada. Os animais à míngua. O açude seco sem peixes. Você exterminou coisas que considerávamos indestrutíveis. Escancarou nossos medos.

 

Nos meus pesadelos — e como eles são intensos —, você se transforma num terrível furacão. E vem em minha direção. Estou parado diante de um precipício. Você arrasta tudo a sua frente. Quando me alcança, e vai me destroçar, eu — infelizmente — acordo. Estou vivo. Afago a cama e estou malditamente vivo. Respiro com sofreguidão. Imito a mãe. Não tenho traqueostomia. Lá embaixo, a mãe ruidosa está acordada. Ela dormia muito pouco antes da tua chegada. Agora, só com muitos comprimidos. Acho que nunca mais vamos dormir. Você nos mantém acordados o tempo todo. Zumbis em nossa própria casa.

 

Na tarde em que você chegou, eu não estava sozinho. A voz em câmara lenta — uma voz pastosa, arrastada — anunciou a tua presença. Um anúncio solene, digno de uma majestade de um reino desconhecido. O reino das trevas. A tarde cinza, pronta para mais um chuvisco, tornou-se negra. A devastação estava apenas começando. É tão difícil combater um inimigo que nos escava a intimidade. Por que você voltou? A garganta da mãe não te saciou a fome? Você não é bem-vindo. Não te queremos aqui. Veja o estrago. Não está satisfeito? A casa não é a mesma. Tivemos de nos mudar. Por tua causa. Sabia que nos mudamos por tua causa? É uma história longa e complicada.

 

A casa nova é melhor. Mas a vida piorou muito. Trouxemos pouca coisa para a atual morada. As nossas coisas não arrastam lembranças. Nem mesmo as fotografias. Não nos reconhecemos nelas. Não somos mais aqueles que habitamos o papel desbotado. Nossos antigos contornos não combinam com o que nos transformamos. Deixamos quase tudo na casa velha. Aqui, o fogão e a geladeira são os mesmos. As roupas também. A mãe tem um guarda-roupa cheio, estufado de camisas, blusas e calças. Mas se arrasta pela casa aos farrapos. Um fantasma malvestido. Uma sombra de uma mulher cadavérica. Meus filhos têm medo da avó. Eu compreendo. Aquela avó silenciosa e pouco amorosa transformou-se num horripilante monstro. Quando a vovozinha se parece muito com o lobo, é preciso chamar o caçador. Não existe outra vovozinha nas entranhas da mãe. Impossível ao corpo de pele e ossos comportar duas avós. Por que tanta roupa para um corpo fora de moda? Com que roupa vou enterrá-la? Com que roupa irei ao velório?

 

 

Toda segunda-feira, vamos combatê-lo. É uma batalha perdida. Aparentemente, é bastante simples. Já estou acostumado ao Erasto Gaertner — o hospital para cancerosos em Curitiba. A gente se acostuma a tudo, não é mesmo? Estaciono o carro na porta de entrada. Deixo a mãe ali e sempre digo “me espere aqui, vou estacionar”. Como se ela pudesse ir a algum lugar sem mim. Sou seu cão de guarda. Um guapeca sarnento e cego a conduzir uma mulher por uma estrada escura. Estaciono o carro. Engancho a mãe aos meus braços e caminhamos numa lentidão sem fim pelos corredores do hospital. Na entrada, está o batalhão de desesperados à espera de atendimento. Já vencemos esta fase. Agora, percorremos um trajeto mais longo. Passamos por bancos atulhados de gente: doentes e familiares se parecem muito. Há sempre um sorriso escapando em nossa direção. A morte, às vezes, esconde-se atrás de um sorriso. Viramos à esquerda. Ao fundo, a pequena sala.

 

A mãe ganha uma etiqueta com algumas informações. Colo-a na blusa amassada, na altura dos seios murchos. O boi antes do matadouro é rastreado. Sentamos e esperamos. É sempre igual. Não basta a condenação, é preciso esperar. Bolacha e chá são servidos. Aceito chá. É quente e me traz boas lembranças. A enfermeira nos chama. Entramos numa pequena sala. Agora, apenas uma injeção. Ao nosso lado, várias pessoas com canos grudados à pele. Todos querem te expulsar do corpo. Já te disse: você não é bem-vindo. Por que não vai embora de uma vez por todas? A enfermeira — gentil e atenciosa — abaixa a calça da mãe para injetar alguma coisa. Nunca saberemos o que é. Viro o rosto. Não suporto ver no que você transformou a mãe. É rápido. Apenas uma injeção. Voltaremos na próxima segunda-feira. Assim será durante seis meses, caso a mãe aguente o repuxo. Duvido que suporte. Mas como disse a médica, é preciso tentar de tudo. Sim, é preciso tentar de tudo. Estamos tentando de tudo.

 

Deixo a mãe à porta do hospital. Espere aqui. Vou buscar o carro. Sempre as mesmas palavras. A mãe senta-se com dificuldade ao meu lado. Voltamos para casa. Nós três: eu dirigindo; a mãe morrendo; e você escavando um pulmão que não te pertence.

 

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com.br)

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