5:40A sociedade sob domínio da subpolítica

por Ivan Schmidt

 

A polêmica, mas absolutamente insofismável opinião do ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre os partidos de mentirinha e o estágio pedestre da política brasileira com o domínio total do Executivo sobre o Legislativo – o que todos os brasileiros estão cansados de saber – guarda uma proximidade significativamente explícita com a tese defendida pelo intelectual alemão Ulrick Beck, que a nomeia com a adequada expressão “subpolítica”, aliás, muito bem explicada no livro La société du risque.

 

Sabendo-se que o presidente do STF fez parte de seus estudos acadêmicos na Alemanha e é conhecedor do idioma, é plenamente aceitável supor que em algum momento tenha lido os livros de Beck, autor sobejamente citado pelo jornalista francês Jean-Claude Guillebaud em A força da convicção (Bertrand Brasil, RJ, 2007).

 

Assim, não é nenhum exagero imaginar que o ministro estivesse pensando (mesmo sem empregar o termo) que a maioria dos partidos de aluguel se insere sem o menor pudor naquilo que Beck chamou de subpolítica. Num escorreito sumário do pensamento do ensaísta alemão, Jean-Claude informa que o conceito abrange um estranho aglomerado que mistura os laboratórios de pesquisa, as sociedades privadas, a lógica da Bolsa, a mídia, a efervescência da sociedade civil, os efeitos da moda, a pressão publicitária e dos incontáveis lobbies.

 

O livro do jornalista francês que pouco tempo depois da edição brasileira já podia ser encontrado em pontas de estoques, numa lamentável percepção do desinteresse do considerado leitor por coisas sérias, que não se percam em fúteis divagações sobre os variados tons de cinza, fornece dados precisos sobre a realidade desvendada pelo ministro Joaquim Barbosa, que, a meu juízo, num dos momentos mais inspirados de sua atuação declarou ao país o que pensa sobre a indigência da atividade política, ressalvadas obviamente as raras exceções.

 

Guillebaud escreveu que essa força solapadora “é subterrânea, coloca-se por baixo da política tradicional e do debate democrático, mas, na realidade, determina a mudança social. Essa intrapolítica possui, de fato, toda a capacidade de influência de uma verdadeira religião”. Uma das conclusões do autor é sintomática e parece servir como uma luva bem ajustada à situação observada atualmente no planalto central: “O aparelho democrático, com seus debates parlamentares, suas comissões de espertos, suas leis e seus regulamentos, mantém ainda a ilusão, mas, nos fatos, ele teve seu poder amputado. Ele só existe para registrar e codificar, bem ou mal, as mudanças, que são apresentadas como inevitáveis. A subpolítica assumiu seu lugar e direciona a mudança, sem qualquer debate verdadeiro e a salvo da crítica argumentativa”.

 

Os argumentos de Guillebaud são habilmente coroados pela afirmação do próprio Ulrich Beck no livro já referido: “A política tornou-se uma simples agência de publicidade financiada pelos fundos públicos, que proclamam as qualidades de uma evolução que ela não conhece e da qual não faz parte”.

 

As instituições estão sem fôlego, vaticina o jornalista francês que adiciona a essa fórmula inquietante as igrejas, a escola, a família, os partidos políticos e até mesmo o Estado que “deixaram de concretizar a coesão social editando crenças comuns”. O resultado é que todos perderam a importância que sempre lhes foi primordial: “Essas instituições sobrevivem, não há dúvida, e conseguem ainda manter uma parte de seu antigo prestígio, mas perderam o poder de instituir, que era, etimologicamente, sua vocação”. Dentre as instituições citadas Guillebaud colocou em chave própria a Igreja Católica, afirmando que “sua linguagem tornou-se inaudível”, embora seja preciso reconhecer que a desdita é partilhada pelas demais.

 

Abstraindo o cenário europeu com sua múltipla galeria de filósofos, cientistas sociais e historiadores, inteligentsia que serviu de plataforma para a extensa pesquisa de Guillebaud, depara-se com um substrato que se calhar, como diriam nossos irmãos lusitanos, tem aplicação imediata ao cenário tupiniquim. O pensador francês, que publicou seu livro em 2005, parecia estar antecipando em pouco mais de dez anos alguns lances da política (ou subpolítica) brasileira.

 

A analogia é inevitável: “A expressão ‘um outro mundo é possível’ passava por evidente antes. Hoje é interpretada como indício de um populismo protestatório e marginal”, anotou Jean-Claude para em seguida admoestar que “um partido político moderno, mesmo de esquerda, não pode ter como meta transformar a sociedade. A sociedade se transforma por ela mesma, segundo  modalidades complexas”.

 

Nada mais estimulante para ampliar a tentativa de elucidar o que se passa hoje no Brasil, um ano antes da eleição presidencial de 2014, quando os três candidatos declarados (Dilma Rousseff, Aécio Neves e Eduardo Campos) lançaram mão de pequena variação do slogan usado há alguns anos na Europa, para forjar em absurda coincidência o mote principal das campanhas: “Fazer mais e melhor”. A variação gramatical entre um e outro é imperceptível  e parece ter sido pensada para embaralhar a cabeça do eleitor menos informado, para quem todos os candidatos acabam sendo farinha do mesmo saco.

 

Aparentemente nenhum deles se preocupou, até esse momento, em auscultar a população por meio de pesquisas com validade científica, para saber o que pensa a cidadania que trabalha mais de cinco meses por ano, apenas para pagar impostos, sobre o que é “mais e melhor”.

 

Mas, essa deficiência congênita, segundo Guillebaud, é suprida da seguinte forma: “Aplicando técnicas de marketing cada vez mais inteligentes, seus promotores vieram a construir um envoltório psíquico que não está muito distante do sagrado e do culto. Como se sabe, trata-se mais de vender símbolos do que produtos, no sentido concreto do termo”. Usemos a imaginação ao ler a frase seguinte também de autoria do francês: “Os publicitários, para atender as empresas clientes, esforçar-se-ão, por conseguinte, para elaborar ou valorizar uma imagem sugestiva, destinada a obter a aceitação – irracional – do consumidor”.

 

Pois bem. Usemos a imaginação e substituamos as expressões “empresas clientes” por políticos, e “consumidor” por eleitor. Cá pra nós: a única coisa que me despertou certo ressentimento foi ter minha pretensa capacidade pensante reduzida a um sentimento meramente irracional. É a subpolítica, meus caros.

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2 ideias sobre “A sociedade sob domínio da subpolítica

  1. ÊITA!!!

    Buenas: os moços aí tão reinterpretando o que os nazi-fascistas já sabiam e utilizaram largamente até chegarem ao poder e ainda depois….Não tem nenhuma novidade pra quem fica sentadim oiando e matutando…

  2. Mr.Scrooge

    Só temos o que merecemos. O episodio do fim do Bolsa Família é prova disto, os beneficiados chegaram ao cumulo de depredar as agencias da Caixa para receber o que lhes era devido. E o Bolsa Família não acabou, e quem é que vai pagar os danos das agencias depredadas? O mesmo Governo que paga os depredadores. A realidade brasileira impedem uma mudança substancial de rumos e comportamentos, por isto insisto e repito, só temos o que merecemos.

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