7:32Os papeis de Hemingway

Por Ivan Schmidt

 

A notícia é da semana passada e das mais alvissareiras. Um acordo entre a Biblioteca John Fitzgerald Kennedy, de Boston (EUA) e a Fundação Finca La Vigia que se dedica a cuidar da casa e dos documentos nela abandonados pelo romancista Ernest Hemingway (1899-1961), ao se retirar de Havana em 1960, meio ano após o triunfo da revolução liderada por Fidel Castro, viabilizou a transferência de dois mil documentos digitalizados e objetos pessoais do autor de “Por quem os sinos dobram”.

Li a matéria na edição on line do El País, postada de Nova York pela repórter Andrea Aguilar, relembrando que Hemingway mesmo dispondo de amplo escritório na torre sudoeste de sua vila no subúrbio de São Francisco de Paula, poucas vezes subia as escadas. Preferia escrever em pé, calçando chinelos gastos – primeiro a mão e depois a máquina – em seu ensolarado quarto de dormir, aliás, dividido em duas alcovas descritas em detalhes por George Plimpton na famosa entrevista publicada, em 1958, pela Paris Review.

A entrevista foi publicada quatro anos depois que Hemingway recebeu o Prêmio Nobel de Literatura e três antes que explodisse os miolos com o disparo de um de seus rifles de caça na fazenda de Ketchum (Idaho), no dia 2 de julho de 1961. Naquele dia o que escreve essas linhas, então com 21 anos, havia acabado de almoçar quando o rádio anunciou em edição extraordinária a morte do famoso autor.

Segundo Andrea, aquele quarto atulhado de livros, panfletos, originais e folhas avulsas, assim como o conjunto de material bibliográfico que restou na casa permaneceram fora do alcance de pesquisadores e acadêmicos norte-americanos por mais de cinco décadas, triste realidade que agora muda com a recepção pela Biblioteca JFK da versão digitalizada dos dois mil documentos pertencentes ao escritor.

A Fundação Finca La Vigia foi organizada em 2004, nos Estados Unidos, depois de uma viagem à ilha feita por Jenny Phillips, neta do editor Maxwell Perkins, grande amigo de Hemingway, e do congressista de Massachusets, James McGovern, defensor do reatamento de relações entre Cuba e Estados Unidos.

Essa é a segunda vez que documentos digitalizados de Hemingway foram enviados a Boston, depois dos três mil incorporados ao acervo da biblioteca em 2008. Entre aqueles papeis encontrava-se, por exemplo, o manuscrito de uma versão alternativa para o final do romance “Por quem os sinos dobram”. Um dos compromissos assumidos pela Fundação Finca La Vigia é a melhoria das condições de conservação do material e a restauração da casa, assim como a construção de um novo edifício com controles de temperatura e umidade.

O projeto inclui também, assinalou Andrea, uma inédita ação de cooperação cultural com o apoio dos departamentos de Estado e Tesouro e o governo cubano, visando formar pessoal especializado para zelar pelo precioso material.

Hemingway estava em Havana em novembro de 1959 quando Fidel Castro entrou na cidade, mas só abandonou definitivamente o país em julho do ano seguinte. Na ocasião transferiu para uma caixa forte os manuscritos e papeis considerados mais importantes, sendo a propriedade e os seis mil volumes de sua biblioteca pessoal nacionalizados pelo governo cubano ato contínuo à frustrada tentativa de invasão da baía dos Porcos.

O jornalista, aventureiro e escritor, cujo estilo e obra marcaram o antes e depois da literatura norte-americana, repetiu o gesto do pai em 1929 (sua mãe lhe deu de presente a pistola usada pelo pai) suicidando-se em julho de 1961. Na época, a administração Kennedy negociou a última viagem de sua quarta mulher, Mary Welsh, a Cuba. Ao retornar, levou para os Estados Unidos um barco cheio de papeis e livros confiados então à biblioteca bostoniana, queimando os de menor valor histórico e cultural e deixando para trás milhares de documentos.

Dentre os papeis agora examinados pelos funcionários da Biblioteca JFK encontraram-se alguns que exibem o lado mais doméstico do escritor, tais como anotações sobre as marés e condições climáticas na ilha, notas alusivas à navegação pelo golfo na tentativa de avistar submarinos alemães, nos anos 40, o passaporte, uma carta a Ingrid Bergman, listas de compras e notas de despesa em bares.

O exame detido da papelada poderá revelar facetas desconhecidas do aventureiro, embora o período vivido em Cuba esteja descrito nos livros “O velho e o mar” (1952) que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer seguido do Nobel (1954), e na edição póstuma de “As ilhas da corrente” (1970). Nesse último romance Hemingway relatou com exagerada fantasia, segundo a maioria dos críticos, as vigílias a bordo do Pilar com a intenção de localizar e denunciar às autoridades norte-americanas a presença de submarinos do Reich em águas do golfo do México.

Em 1916 o jovem Ernest Miller Hemingway viajou para a Itália alistando-se como motorista de ambulâncias da Cruz Vermelha na Primeira Guerra Mundial, sendo ferido em batalha. Algum tempo depois foi viver em Paris, aparecendo como um dos personagens do que Gertrude Stein chamou de geração perdida. Em 1926 foi publicado o romance “O sol também se levanta”, chamando a atenção para o estilo revolucionário da prosa do estreante, que já havia lançado “Em nosso tempo” (1925). Em seguida vieram “Adeus às armas” (1929), “Por quem os sinos dobram” (1940), “Do outro lado do rio, entre as árvores” (1950), “O velho e o mar” (1952) e as edições póstumas “As ilhas da corrente” (1970) e “O jardim do Éden” (1986).

Hemingway escreveu também vários volumes de contos e um punhado de livros classificados como não-ficção, nos quais contou em detalhes as muitas viagens realizadas em expedições de caça pela África, as peripécias de correspondente de uma cadeia de jornais norte-americanos na Guerra Civil Espanhola, além do fascínio pelas corridas de touros na Espanha, a famosa fiesta, onde se tornou amigo dos principais toureiros Ordoñez e Dominguin.

Talvez o mais emblemático dos livros escritos por Ernest Hemingway, aquele em que seu caráter e personalidade sobrenadam à espessa saga tecida em torno de seu nome por admiradores fanáticos e detratores idem, tenha sido “Paris é uma festa”, também publicado postumamente em 1964. Na Paris dos anos 20 do século passado, quando estrangeiros pobres passavam o mês com poucas dezenas de dólares e o estilo de vida da cidade luz era — para dizer o mínimo – esfuziante, Hemingway conviveu ou foi contemporâneo de figuras não menos notáveis das artes e literatura como Picasso, Modigliani, Miró, Eric Satie, James Joyce, Ford Madox Ford, Tristan Tzara, Zelda e Scott Fitzgerald, além das grandes damas Gertrude Stein e Sylvia Beach, proprietária da livraria Shakespeare and Company, na qual os leitores podiam alugar os livros cuja dureza não lhes permitia comprar.

Diz-se que nesse livro escrito 40 anos depois dos anos loucos em Paris, Hemingway tratou com desdém quase todas as figuras que com ele conviveram na época, especialmente Scott Fitzgerald, um pouco mais velho e casado com Zelda, a quem Hemingway acusava de ter inveja do sucesso literário do marido. O crítico Richard Elmann, biógrafo de James Joyce, no livro “Ao longo do riocorrente” (1991), a propósito de Hemingway escreveu que este “tinha aquela tendência de mentir que Tolstoi considerava tão inevitável nos soldados quanto Platão nos poetas”.

Recorrendo a Carlos Baker, autor de uma biografia e um dos melhores estudos críticos sobre a obra de Hemingway, Elmann pontuou que “o elemento patético de Hemingway parece provir de uma profunda percepção de suas limitações, que o levou a se arrogar uma qualidade maior do que tinha tanto na vida quanto na obra”.

Não foi o que expressou, entretanto, Malcolm Bradbury, em “O romance americano moderno”, para quem “o constructo ficcional de Hemingway seria sempre um lugar claro e bem iluminado (…) no qual as emoções românticas e as dores seriam ocultas, jamais efetivamente enunciadas, um mundo específico, exato, exclusivo, com seu próprio tipo de terreno, sua paysage moralisé, sua própria geografia de lugares santificados, bebidas especiais, armas e varas de pescar, seus próprios modos realistas de pensar”.

Bebedor de respeito, em “Paris é uma festa” Hemingway não escondeu a compulsão pelo álcool, bordejando a maratona etílica vivida ao lado de Scott Fitzgerald numa viagem de carro pelo interior da França, que deveria iniciar em Lyon, onde Scott havia deixado o auto numa oficina. Os dois acabaram se desencontrando e Hemingway teve de esperar o amigo num hotel. “Saí para dar uma volta e entrei num café para tomar um aperitivo e ler os jornais”, escreveu para logo acrescentar ter encontrado um sujeito a quem convidou “para tomar uns tragos” e, depois jantar: “A comida era saborosa e o vinho perfeitamente bebível”. No dia seguinte o esperado chegou e Hemingway percebeu que “a cara de Scott indicava que ele tinha bebido umas e outras e o seu jeito era de quem tomaria mais um gole. (…) Fomos ao bar e tomamos uísque com água Perrier”.

Na volta pararam num povoado para comer o lanche que haviam levado e beber “uma admirável garrafa de Mâcon branco. Quando chegamos à cidade que tem o nome do vinho, compramos mais quatro garrafas para que não nos faltasse combustível na viagem”. No trajeto seguinte choveu e como o carro não tivesse capota (na verdade, Zelda mandara arrancá-la) ambos ficaram encharcados. Scott pegou um resfriado e Hemingway resolveu comprar uma garrafa de uísque, mas o amigo piorava.

Hemingway, anos depois, escreveu: “Jamais me ocorrera fazer uma refeição sem tomar vinho, cidra ou cerveja. E eu gostava de todos os vinhos, exceto dos que eram doces ou encorpados, e não podia imaginar que o simples fato de Scott ter tomado comigo algumas garrafas daquele esplêndido Mâcon branco, suave e seco pudesse produzir nele alterações químicas que o transformassem num imbecil”. O negócio era se conformar e “enquanto esperava que o camareiro trouxesse o que lhe pedira, fiquei lendo um jornal e acabei com uma das garrafas de Mâcon que havíamos aberto em nossa última parada”. Até o final do périplo haveria tempo e vontade para sorver inúmeras doses de uísque e incontáveis garrafas de vinho Fleury e Montangny, que iam mudando de nome conforme a região percorrida. Pelo menos uma coisa Hemingway descobriu em relação a Scott: “Qualquer gota de álcool que engolisse parecia estimulá-lo, inicialmente, mas depois o envenenava”. No encerramento do livro o beberrão lembrava candidamente que seu único desejo fora retratar “a Paris dos meus primeiros tempos, quando éramos muito pobres e muito felizes”.

A intensa vida de aventuras e dedicação a atividades másculas como a caça e a pesca em alto mar, a paixão pela corrida de touros e pelo boxe chegou ao final numa clara manhã de domingo na fazenda de Ketchum, comprada um ano antes. Eram devastadores os efeitos da hipertensão, do colesterol elevado e da depressão, agravados pela notícia que seu querido amigo Gary Cooper, o ator que vivera o personagem Robert Jordan na versão cinematográfica de “Por quem os sinos dobram” morria de câncer na Califórnia. Aconselhado pelos médicos Hemingway viajou para Idaho, lá chegando cinco dias e meio depois. “Mal tinham acabado de desfazer a bagagem quando um tiro de espingarda na calma matinal da casa do rio Wood ecoou pelos ares até todos os cantos do mundo”, lembrou Baker ao concluir que “para espanto e tristeza de muitos milhares de seus admiradores, o velho e incansável leão estava morto”.

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