6:34A essência reacionária

por Ivan Schmidt

O acadêmico chileno Fernando Mires, professor catedrático da Universidade de Oldenburg (Alemanha), publicou há algum tempo na revista Política Externa instrutivo ensaio que escolheu classificar como breve revisão histórica sobre as adversidades entre socialismo nacional e democracia social.

A revista em referência é uma criação da Editora Paz e Terra (SP), com a cooperação editorial do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), Instituto de Relações Internacionais e do Grupo de Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP).

Mires assinalava que “na América Latina atual assistimos a uma confrontação tácita, na maioria dos países, assim como entre os diversos governos de cada um desses países, entre aqueles que defendem os princípios derivados da democracia social e aqueles que postulam uma volta aos princípios do socialismo antidemocrático que fracassou no século XX. A reedição desse socialismo fracassado recebeu o pomposo, mas também insubstancial título de “socialismo do século XXI”.

A ideia de democracia social, do ponto de vista econômico, teve origem na Revolução Industrial ocorrida na Europa, reunindo o interesse de uma coalizão formada por grupos democráticos e sociais e trabalhadores industriais organizados em sindicatos, “cujo objetivo era dar forma política a uma economia capitalista que nesse tempo contava com limites políticos muito precários” salientava Mires, enfatizando tratar-se de algo parecido com “um capitalismo sem política – hoje conhecido como ‘capitalismo selvagem’ — cujos estragos entre a população operária europeia chegariam a ser dramáticos, e que foi descrito, entre outros por Friedrich Engels”. Sob o ponto de vista da ideologia a democracia social provém das revoluções democráticas da modernidade, destacando as ocorridas na França e nos Estados Unidos.

Com o rompimento interno da democracia social russa provocado pelo social-democrata Lênin e seus camaradas, lembrou Mires, veio a ruptura definitiva entre o projeto de democracia social e o socialismo histórico, primeiro na Alemanha e, mais tarde, em outros países da Europa. “Mas Lênin foi mais longe. Não só rompeu a relação entre democracia e socialismo, tão valiosa aos primeiros socialistas como, além disso, rompeu radicalmente com a tese de Marx de que a revolução socialista deveria começar nos países de desenvolvimento capitalista mais avançado”.

Mires diz, ainda, que os social-democratas reformistas caíram na própria armadilha, pois “aceitaram a tese fatal de hegelianismo de esquerda no sentido de que o desenvolvimento histórico avançava de maneira orgânica em direção a uma sociedade futura chamada socialismo”.

A revolução mundial marcada para eclodir na Europa capitalista, segundo as teses de Marx e Engels, uma espécie de “darwinismo sociológico, de acordo com o qual a sociedade avança do inferior para o superior”, deveria brotar das raízes da exaltação do trabalho como meio de absolvição do “proletariado”, o messias portador da razão histórica.

Tendo em vista que a revolução mundial não aconteceu, Mires apontou o surgimento de uma terceira opção: o socialismo nacional, dividindo-o em duas variantes: a fascista e a stalinista, nas quais pontificaram Benito Mussolini, Adolf Hitler e Josef Stalin, definidos como líderes messiânicos, condutores da história e de seus povos. Não está no escopo desse artigo reproduzir os dados mais chocantes em relação à famigerada tríade, o que é lamentável, porquanto tornariam mais abrangente o enunciado até aqui exposto.

E, além disso, é necessário levar em conta as equilibradas considerações de Fernando Mires com respeito ao cenário político-social dessa parte do planeta, a América Latina, “onde não somos muito originais (temos a predileção tortuosa para copiar os fracassos dos demais)”, na qual a “ideia do socialismo nacional ganhou forma e força”.

A rigor, Mires escreve que à exceção de líderes socialistas do Chile e Uruguai, o socialismo nacional tornou-se a principal ideologia de movimentos ditos nacionalistas e populistas e, em alguns casos, utilizados por ambiciosos oradores como cobertura para alcançar o poder. “Muitos partidos de tendências ideológicas socialistas e nacionais, fundados em diversos países latino-americanos, estavam diretamente influenciados pelo socialismo nacional do tipo fascista europeu. Na Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra) do Peru, essa influência foi mais implícita; no Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) da Bolívia, foi mais explícita. No peronismo argentino, as tentações fascistas eram tão evidentes que nem Eva Perón tentou escondê-las. No Partido da Revolução Institucional (PRI) mexicano aconteceu algo parecido”.

Chegando aos nossos dias, mesmo diante do incompreensível silêncio diante da longa ditadura brasileira, Mires diz que depois do “túnel sinistro das ditaduras como a dos generais argentinos ou a do monstruoso Augusto Pinochet, observamos atualmente que desse passado ditatorial só resta Cuba, onde já se observam sinais de saída da longa noite do socialismo real”.

Segundo ele os valores da democracia social parecem guiar os passos dos governos do Brasil, Chile, Colômbia, México, Uruguai e Argentina, embora faça uma advertência sobre a ameaça pendente sobre a América Latina, o chamado “socialismo do século XXI, última tentativa e, em essência profundamente reacionária, de impor o socialismo nacional em alguns países da região”.

O curioso, na concepção de Mires, é que a teoria do socialismo do século XXI jamais existiu, mas isso “não é razão para não levá-la a sério”, sobretudo por suas “tendências nitidamente autoritárias, até mesmo militaristas, cujos representantes alcançam o poder manobrando internamente movimentos sociais com inegável conteúdo popular”. Alguma dúvida?

 

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