7:27Dezenove degraus

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

A mãe não conhece Julio Cortázar. Mas precisa subir uma escada. São dezenove degraus. Estou ao seu lado. No topo, o consultório da nutricionista. As árvores projetam sombra nos degraus emborrachados. As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. Assim estamos: de frente. A mãe agarrada ao meu braço direito — os passos pequenos, miúdos, desesperados. Uma criança engatinhando pelos móveis da casa, desafiando o tombo inevitável. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. A mãe tem pouco de natural. É um boneco desajeitado à espera de amparo. O olhar sempre para o chão. O pescoço perdeu a vitalidade para sustentar a cabeça deformada. A respiração é lenta e ruidosa pelo buraco cavado no pescoço. Subir escadas ou escalar o Everest, o K2, o Kangchenjunga nos parece a mesma coisa. Há sempre o risco de morrer no meio do caminho. Na ida ou na volta.

Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada embaixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça, e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos de pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-se à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. Os pés da mãe estão revestidos de sapatilhas de pano. Xadrez com lacinho. Se fosse uma menina de quinze anos, combinariam muito bem. A mãe não segue as instruções de Cortázar. O pé direito aterrissa no primeiro degrau. O esquerdo não tem forças para subir ao segundo degrau. Cai, abatido, ao lado do direito. Esquerdo e direito no primeiro degrau. Calculo: nesta velocidade, demoraremos o dobro do tempo para vencer os dezenove degraus do Everest emborrachado.

O pé direito da mãe tem um corte longitudinal. O rasgo imenso do calcanhar ao meio dos dedos. Um rio seco, sem barcos nem peixes. Logo após eu ter nascido, a mãe foi ao paiol de milho buscar algo. No terreiro um prego enferrujado atravessou-lhe o pé direito. O tétano entrou por ali. O tétano pelo pé. O câncer pelo pescoço. No hospital — ou algo parecido na geografia de um mundo precário —, abriram o pé da mãe e o escovaram sem dó nenhum. Até hoje a mãe sente a escovinha a arranhar-lhe a carne desprotegida. Talvez o método um tanto bárbaro de cura tenha colaborado para deixar o pé direito da mãe esparramado e grande. Ela calça quarenta. Eu, quarenta e um. Estou em vantagem. Sempre um número à frente da mãe

Mas agora, estou ao seu lado na escada de dezenove degraus. Recorro a Cortázar. Nada mais me vem à cabeça ao encarar uma escada rumo a uma nutricionista tagarela e empolgada com a magreza alheia. Ao segundo degrau, vai o pé direito. Em seguida, o esquerdo. É mais difícil subir uma escada nesta simetria torta. Mas a lógica dos pés de alguém com câncer tem pouca lógica — apenas a da sobrevivência. Tenho de seguir os passos da mãe. Pé direito no terceiro degrau, pé esquerdo no terceiro degrau. Seguimos na lentidão que nos é possível. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.) Não tenho esta preocupação: à mãe, é impossível levantar ao mesmo tempo o esquerdo e o direito. É quase impossível levantar um de cada vez.

A mãe ganhou oitocentos gramas em quinze dias. A nutricionista se mostra animada. Aos poucos, recupera os vários quilos abocanhados pelo câncer. Ainda falta muito. Se for difícil subir a escada, da próxima vez a atendo lá embaixo. A nutricionista está disposta a descer o Kangchenjunga em caso de emergência. A mãe balança a cabeça. Resiste à derrota. Após a despedida, a mãe encara os dezenove degraus. É mais fácil subir ou descer uma montanha? Agarra-se ao corrimão de metal. Depois, ao meu braço direito. Confia mais no corrimão ou no meu braço magro?

As escadas se descem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. E bem devagar. Até se alcançar terra firme.

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* Os trechos aqui publicados de Instruções para subir uma escada, de Julio Cortázar, são da tradução de Gloria Rodríguez (Histórias de cronópios e de famas, Civilização Brasileira, 1998).

– Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com.br)

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