17:08Entre a cordialidade e a ruptura

de Alvaro Borba, publicado no blog ABCuritiba

Gustavo Fruet: espremido entre a cordialidade e a ruptura

A arquiteta Cecília Giuliano tira do bolso duas folhas de papel A4. É o discurso dela para o lançamento do livro “Parques e Bosques Urbanos de Curitiba”. Cecília divide o palanque montado no Passeio Público com o prefeito da cidade, Gustavo Fruet, e outras autoridades da gestão municipal, além do representante da rede de supermercados que ajudou a financiar o livro. O texto da arquiteta começa com uma declaração de amor  à natureza e termina com ela se oferecendo para dar autógrafos. Aplausos protocolares.

Quando Cecília finaliza, o microfone passa de mão em mão. Há mais discursos longos, entre eles o do representante do supermercado. Com a camisa aberta em dois botões, mostrando os pelos do peito e um medalhão dourado, ele passa uma impressão de despojamento que contrasta com a rigidez formal da arquiteta que discursa lendo.  Mesmo assim, a fala dele se arrasta por um bom tempo; ele anuncia as virtudes da empresa que representa, também diz que ama o meio ambiente, etc. Aplausos protocolares.

São 11h53 da manhã quando Gustavo Fruet finalmente recebe o microfone. Em solenidades assim, o político mais graduado é sempre o último a falar.

“Na última solenidade em que eu estive tinha um menino de 6 anos, o João. Deram o microfone pro João discursar e, olha, foi o melhor discurso que eu ouvi em muito tempo! O João só disse assim: ‘Que não chova e que ninguém se machuque. Amém!’ Hoje, eu vou usar as palavras do João, mas quero acrescentar o seguinte: Que não haja discurso longo”. A arquiteta olha pro chão. O representante do supermercado faz menção de aplaudir.

Se Fruet tivesse encerrado sua participação nesse ponto, teria trocado a formalidade que caracteriza a vida pública de Curitiba por uma novidade espirituosa e, quem sabe, até meio ofensiva. Não o fez. Acrescentou elogios aos varredores do Passeio Público e aos policias militares. Terminou com um previsível “Viva Curitiba”. O discurso acabou sendo a síntese do próprio prefeito: um homem divido entre a cordialidade e um aparente desejo de ruptura.

Ao descer do palanque, Fruet é abordado por Gerson Guelmann, o homem que coordenou sua campanha em 2012: “Tem vários dos seus secretários que deveriam estar aqui”. Como a advertência de Guelmann é dada em tom amigável, com mão no ombro e sorriso no rosto, Fruet solta uma gargalhada. A conversa dos dois não poderia se estender por mais tempo. A secretária Mirela Prosdócimo está por perto e traz um par de crianças que quer apresentar ao prefeito. Fruet começa a tirar fotos, uma atividade que tomará boa parte do seu sábado.

Depois de Mirela, há o pai de Bárbara e Luara. Ele quer que suas gêmeas de 5 anos sejam fotografadas com Fruet. O pedetista consente. Alguém invade a foto e Bárbara se irrita. Todos repetem a pose. Mais pais e filhos se aproximam. Querem fotos.

Fruet precisa atravessar o Passeio Público para dar a largada em uma das baterias da regata de pedalinhos marcada para aquele sábado. Ao caminhar pelo parque, ele tira 38 fotos com crianças; a maioria a pedido de pais que juravam ter votado nele. Outras tantas fotografias são solicitadas espontaneamente pela piazada. A um menino que usava camisa do AC/DC, Fruet recomenda ouvir Coldplay. O guri não faz cara bonita, mas quer foto com o prefeito mesmo assim.

O chef Alessandre Bressaneli já alcançou a maioridade há alguns verões, mas também quer foto com o prefeito. Bressaneli está no Passeio Público para participar da Vinada Cultural, uma feira gastronômica especializada em vina. Ele oferece um cachorro quente a Fruet, sorri para o clique e sai faceiro. O prefeito fica com o hotdog na mão. Come metade enquanto caminha e posa para novas fotos. Por fim, deixa o sanduíche nas mãos de um assessor.

Além das crianças e do chef, também interrompem a caminhada de Fruet o reitor da UFPR, Zaki Akel, o jornalista Reinaldo Bessa e uma mulher de meia idade que reclama dos congestionamentos. “Curitiba tem quase um carro por habitante, a gente faz o que pode, mas não tem como voltar no tempo. A gente não vai voltar aos anos 80”, explica o prefeito.

Na largada da regata de pedalinhos, Fruet é recebido por Dante Mendonça. O cronista, junto com uma boa meia dúzia de intelectuais, é o mentor da programação que fez a classe média pisar no Passeio Público pela primeira vez em muito tempo. A regata, com seu ineditismo galhofeiro, pretende resgatar o aspecto lúdico do parque mais antigo de Curitiba. Embora a ideia não tenha partido da prefeitura, consta que foi bem recebida no Palácio 29 de Março.

Ao receber o prefeito, Dante se apresenta com um quepe de marinheiro. O acessório o faz parecer uma espécie de Chacrinha comportado.  Fruet é encaminhado ao pequeno trapiche que marca a linha de chegada. Ele espera que os pedalinhos sejam alinhados para a partida e faz soar um sino. Dada a largada, os pedalinhos fazem uma trajetória confusa. Alguns se chocam e outros arriscam começar a corrida na contra mão. A cena confusa dura uns poucos minutos. Logo os pilotos pegam o jeito e a corrida flui. Fruet deixa o trapiche e aperta mais algumas mãos. Bate uma foto com dois adolescentes esguios que venceram a bateria anterior e outra com uma piriguete de meia idade. Está atrasado para o próximo compromisso.

Na saída do Passeio Público, mais crianças e mais fotografias. O vereador Paulo Salamuni, presidente do legislativo local, surge com uma pasta debaixo do braço. Quer a assinatura de Fruet numa homenagem que concederá a um líder religioso sírio que visitará Curitiba. “Porra, Salamuni, vai despachar aqui?”, pergunta um assessor irritado. Salamuni faz que não ouve. Fruet se abaixa e, numa posição bastante desconfortável, com o papel apoiado no chão, faz o que o vereador pede; assina. “Esse Salamuni é um sem noção”, me adverte um outro membro da comitiva do prefeito. Salamuni segue Fruet até o carro. O motorista espera enquanto o vereador esbanja saliva. Um assessor, temendo que o vereador derrube o resto da agenda, trata de apressar os dois. Fruet finalmente embarca.

 

A comitiva do prefeito pergunta se haverá almoço. “Almoço é costume burguês. Sejamos revolucionários”, brinca Fruet. Há uma breve deliberação sobre parar para almoçar ou não. Consenso atingido, o grupo faz uma parada em uma padaria da Rua Francisco Alves Guimarães. Todos os assessores querem x-egg, Fruet quer sorvete. Todas as mesas da padaria estão disponíveis. O gabinete se instala na mais discreta. Ao sentar, Fruet tira o celular do bolso pela primeira vez naquela tarde. Recebe uma mensagem de texto de alguém que está irritado com o ruído produzido pelo gerador de energia de um supermercado do Centro Cívico. “Tem que ver isso aqui”, ele diz, antes de guardar o iPhone. Percebendo a deixa, pergunto sobre pesquisas qualitativas e quantitativas que a prefeitura teria encomendado a uma série de institutos. Fruet estava prestes a responder, mas foi interrompido por uma funcionária da padaria. Com um prato de sonhos na mão, ela insiste para que o prefeito prove a nova receita. Fruet, que ainda não havia recusado foto ou comida naquele sábado, aceita. Me oferece um sonho. Recuso e retomo o assunto das pesquisas. “Ah, sim! Só das qualitativas, temos três nas mãos”. Quero saber sobre o que são as tais pesquisas. Fruet menciona um levantamento sobre o metrô: “A cidade está dividida”. Longe do prefeito, um assessor deixa escapar que também há dados sobre a reação do curitibano ao fim do subsídio para o transporte coletivo: “Ao contrário do que se pensa há uma parcela da população que entende que o Beto [Richa] fez uso político desse negócio”.

Um dos principais nomes da equipe de Fruet é o doutor em economia Fabio Scatolin. Ele não está presente na padaria da Rua Francisco Alves Guimarães, mas é mencionado várias vezes. Se não estivesse trabalhando no poder público, Scatolin estaria terminando seu PHD. Há indícios de que ele trate a administração municipal pelas vias da metodologia científica. Scatolin nunca concedeu uma entrevista em que não falasse da necessidade de cruzar dados. Gosta de contrapor pesquisas, mesmo as que aparentemente não guardam relação entre si. Fruet parece compartilhar dessa preferência. Isso fica claro durante a conversa na padaria: “Estamos ajustando a base estatística da prefeitura”, Fruet repete.

Um dos responsáveis por coletar dados sobre a cidade é o ICI, o Instituto Curitiba de Informática. Na padaria, Fruet não menciona os contratos suspeitos que deram fama ao ICI, mas quase se perde ao listar tudo aquilo que a adminsitração municipal poderia estar fazendo se recebesse os preciosos pacotes de informação do instituto. Por fim, ele larga o sonho que estava comendo e assume um ar mais grave: “Vamos trocar toda a diretoria do ICI. E vai ser já”. Já, quando? “Nessa semana. É claro que a gente quer uma solução negociada, mas a coisa tem que funcionar”.

No começo da gestão, Fruet fez com que o ICI aceitasse ser fiscalizado pelo Tribunal de Contas através de um aditivo no contrato. O ICI é uma das faturas mais caras que a prefeitura precisa pagar. Na última gestão, foram firmados mais sete contratos com o instituto que somam R$ 585 milhões. Criado em 1998, o ICI nunca passou por uma auditoria decente e há indícios de superfaturamento que chegaram a despertar o interesse do Ministério Público. Dividido entre a cordialidade e a ruptura, Fruet prefere centrar seus argumentos no trabalho que o instituto deveria estar entregando e não faz referência a suspeitas, por mais bem fundamentadas que pareçam. Foi assim com os restos a pagar deixados pela gestão anterior. Encaminhou um relatório ao MP, mas, ao falar sobre o assunto com a imprensa, não mencionou o nome do antecessor e não ousou soltar a expressão “herança maldita”, recorrente nesses casos. “O [Luiz Geraldo] Mazza diz que me falta ‘punch’. Eu faço o que eu tenho que fazer, não preciso ficar emitindo juízo de valor até porque isso atrapalha os procedimentos”, ele me disse.

A atendente da padaria ressurge. Agora ela oferece um empadão de frango como cortesia. Dessa vez ela não usa a desculpa de que a receita é nova. Fruet aceita. O empadão me interrompe no meio de uma pergunta sobre as receitas da prefeitura. Retomo.  Fruet conta que está prestes a visitar o Japão a convite da JICA, o órgão do governo japonês que oferece incentivos a países em desenvolvimento. Fruet busca um empréstimo equivalente a um bilhão de reais. Sem que eu pergunte, ele completa: “Não é para o metrô”. Quero saber se não é possível pulverisar essa grana em várias obras de mobilidade. “Seria o sonho de qualquer gestor, mas não. Não dá”. E Fruet acrescenta: “Aliás, nem sei se isso é desejável. Uma das nossas pesquisas qualitativas mostrou que quando a administração abre muitas obras ao mesmo tempo, ela passa uma ideia de falta de planejamento”.

Fruet não faz referências ao passado recente e também não pronuncia o nome de Luciano Ducci. Não adianta insistir, ele só se refere ao levantamento qualitativo e faz a política parecer coisa técnica, absolutamente distanciada das relações humanas e dos assuntos pessoais Nem sempre foi assim. Na conversa da padaria, evoco uma lembrança de 2004. Ainda no PMDB, Fruet tinha sido preterido pelo chefe do partido, Roberto Requião, que negou a ele a oportunidade de concorrer nas eleições municipais. Naquela oportunidade, Fruet concedeu uma entrevista cheia de lamentações e lágrimas nos olhos. Foi um pronunciamento absolutamente emotivo e meio inconsequente. O que o fez mudar tanto de lá para cá? “A gente vai ficando com o couro curtido”, é a única explicação que Fruet consegue me oferecer.

De “couro curtido”, ele consegue adotar uma abordagem mais objetiva das eleições de 2012, coisa que foi incapaz de fazer em 2004: “Em 2012 eu sofri um processo de desconstrução, mas não julgo quem liderou esse processo. Quem faz política está sujeito a estratégias assim e isso não pode gerar mágoa”. De fato,  é de se esperar que um político tenha a sua persona  desconstruída quando disputa um cargo no executivo pela primeira vez. É apenas óbvio. Tão óbvio quanto as críticas que a administração dele deve receber caso ele tente a reeleição. O que é mais frágil diante de uma estratégia de desconstrução? A persona, que é uma obra individual, ou a gestão, que é coletiva e depende de milhares de colabores sobre os quais nem sempre se tem controle? A pergunta é retórica. Fruet percebe: “É por isso que a gente não pode se perder com esses atritos de varejo dentro da equipe”, diz ele, enquanto lança um olhar cheio de significado aos assessores que devoram seus sanduíches.

Durante a breve conversa na padaria, deixo um x-salada intocado. Pretendo abandoná-lo na mesa. Fruet não deixa. Argumenta que “fica chato” e manda um assessor embalar para viagem. Ok, como o sanduba no carro. Próximo compromisso: “Libertadores do Crack”.

 

A Copa Libertadores do Crack é um evento esportivo de nome confuso, ligado aos pastores da Igreja Universal do Reino de Deus. A competição é no Ginásio do Tarumã, onde o prefeito é recebido pelo pastor/vereador Valdemir Soares. Filiado ao PRB, Soares tem um sotaque carioca ocasional, usa tênis all-star e, quando tem um microfone, pontua suas frases com “Amém”. Ao ver Fruet na porta do ginásio, o pastor entrega a ele uma camiseta do evento.

Para entrada de Fruet, o pastor preparou algo inadvertidamente cômico: das caixas de som sai a música Eye of the Tiger, a mesma que ouvimos no cinema, quando o boxeador Rocky entrou no ringue. Fruet veste a camisa preta da Libertadores do Crack. Alguém ajeita a gola, que tinha ficado retorcida. O prefeito sacode os ombros, gesto típico de boxeador na véspera da luta. Já paramentado, ele é levado ao centro da quadra. Ao redor dele há adolescentes em uniformes esportivos, enfileirados como se fossem militares. Cerca de dois terços das arquibancadas estão ocupadas. O pastor anuncia o prefeito e manda executar o hino nacional. Eye of the Tiger é encerrada pela metade.

Antes de deixar Fruet discursar, Valdemir Soares protagoniza um show mais longo que o discurso da arquiteta Cecília Giuliano, no Passeio Público. Em determinado momento, ele pede que os adolescentes dêem socos no ar aos berros de “NOCAUTE AO CRACK! NOCAUTE AO CRACK! NOCAUTE AO CRACK!”. A cena guarda um paralelo com o ritual orwelliano do Minuto de Ódio, embora o crack pareça um objeto de aversão mais razoável que o suposto traidor Goldstein. Fruet se vê cercado por jovens de aparência nervosa que socam vácuo, mas reluta em imitá-los.

No breve discurso no Ginásio do Tarumã, Fruet fala das ações previstas na área de prevenção às drogas e cita de cabeça os números das pastas relacionadas ao tema. O termo que Fruet usa é esse mesmo: “prevenção”. O pastor Valdemir, que fala em nocaute, incentiva socos no ar e gosta da música tema de Rocky Balboa talvez preferisse  a palavra “combate”. Na saída do ginásio, dois guardas municipais que estavam de serviço pedem para falar com o prefeito.  Fruet os atende, já diante da Santa Fé pronta para partir. O motorista espera pacientemente.  O próximo compromisso é na Praça do Japão e dessa vez não haverá escala na padaria.

“Você sabia que, em 2011, os restos a pagar da prefeitura saltaram de noventa milhões para quatrocentos?“, me pergunta o chefe de gabinete Itamar Neves, no caminho para a Praça do Japão. Ouço um Itamar cada vez mais enfático reclamar da situação em que a nova gestão encontrou a prefeitura.  Me pergunto por que o prefeito nunca faz o mesmo. Quando chegamos ao Hanna Matsuri, os organizadores deixam Fruet escolher o que ele vai fazer primeiro. Ele quer banhar o Buda. Na tradição Zen, esse é um ritual que evoca uma gratidão irrestrita que se manifesta mesmo diante das circunstâncias mais negativas da vida. Para Fruet, talvez seja só mais uma formalidade. Mesmo assim, agora tudo faz sentido.

 

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