7:50Uma páscoa inesquecível

por Ivan Schmidt

Eu, João Marcos, que estas coisas escrevi num pergaminho para que não se percam e tenham alguma serventia no futuro, tenho 20 anos e aprendi a ler e escrever na língua de nossos antepassados, o hebraico, sendo também versado em aramaico e grego, idioma que elegi para essas anotações. Sou filho de uma viúva chamada Maria, que herdou bela propriedade no Getsemani, onde o protagonista de minha narração viveu alguns momentos dramáticos.

Muito do que aqui está registrado vi com meus próprios ou ouvi com meus ouvidos sempre atentos a captar aqui e ali, pelas ruas e praças de Jerusalém, os murmúrios e conversas abafadas dos escribas, fariseus e zelotes, grupos dominantes na sociedade da época (estamos no início do ano 31 do primeiro século), e qualquer rapaz de minha idade podia identificá-los com facilidade, tendo em vista suas características peculiares.

Era a ocasião da páscoa, festa religiosa que comemorava a libertação do cativeiro de 400 anos no Egito, realizada no dia 14 do primeiro mês (Abibe), conforme Deus tinha ordenado a Moisés, o grande líder do povo de Israel naqueles idos. No dia seguinte à páscoa em que as famílias comiam a carne de um cordeiro de um ano e pães sem fermento (asmos), o dia 15, as famílias continuavam a celebração comendo pães asmos durante mais sete dias, abstendo-se de qualquer outro alimento que contivesse fermento.

Sobre as tradições religiosas de Israel, algumas milenares, os rapazes de minha idade aprendiam nas escolas dos rabinos, sendo a minha a do velhíssimo rabino Binuí, homem verdadeiramente santo que jejuava três vezes por semana e conhecia os escritos sagrados como a palma da mão.

Grande número de patriotas judeus chegava todos os dias a Jerusalém, trazendo numeroso acompanhamento de filhos e parentes próximos para comemorar a páscoa no templo. A cidade fervilhava de gente de todos os cantos da Judéia, de Dã a Berseba, como diziam os antigos. As lojas de quinquilharias, perfumes, sandálias e túnicas se abarrotavam de patrícios que traziam alforjes bem fornidos de moedas de ouro e prata.

As mulheres compravam véus de seda, especiarias, insenso e vestes de luxo, além dos presentes para parentes e amigos que não puderam viajar. Era também a celebração que muitas famílias faziam para agradecer a fertilidade dos rebanhos, a boa colheita de trigo e cevada, o vinho e o azeite produzidos no ano anterior. Os vendeiros de Jerusalém erguiam as mãos para o céu.

Como era comum nas temporadas de festas religiosas, corriam boatos sobre uma sublevação contra a autoridade romana na província da Judéia, chefiada por Pôncio Pilatos, representante pessoal do imperador Tibério, cujo poder civil era resguardado do ponto de vista militar por inúmeras guarnições comandadas por experientes centuriões.

O sentimento de revolta que, no entanto, sempre ficava represado, a não ser por uma ou outra execução a punhal cometida por um zelote, que surpreendia um oficial romano andando descuidado em meio à multidão, só se percebia nos rostos sombrios e taciturnos dos chefes das seitas políticas, de modo especial os zelotes, cuja temível e afiada “sica” estava sempre escondida debaixo da vestimenta. Não demorou e esses assassinos passaram a ser conhecidos como sicários.

Os pretensos líderes do povo se reuniam em lugares afastados do burburinho da população itinerante, se comunicavam por meio de mensageiros de extrema confiança que se embarafustavam pelos becos e vielas com tanta pressa, como se estivessem fugindo da própria morte. Nas tabernas dos bairros afastados, onde vivia a população mais necessitada, emissários dos zelotes, que queriam a guerra, recrutavam homens acima dos 20 anos, hábeis no uso de armas, dispostos a enfrentar por algumas moedas uma tropa melhor treinada e armada, formada por veteranos das muitas guerras travadas pelo exército imperial.

Foi nesses dias que apareceu em Jerusalém um homem chamado Jesus, vindo de Nazaré acompanhado por um grupo de discípulos. Passavam quase todo o dia no templo, onde Jesus discutia assuntos religiosos com os fariseus e, às vezes, com os próprios sacerdotes que se pavoneavam como legítimos donos da verdade. Um dos discípulos de Jesus, João, aproximando-se de um bando de rapazes desocupados, incluindo o que escreve essas linhas, afirmou que aquele homem era o Messias prometido por Deus ao povo de Israel.

Os judeus espertos começaram a reforçar o boato de que o messias davídico, o poderoso chefe militar que apareceria para restaurar a hegemonia dos reis Davi e Salomão, liderando a guerra contra os romanos, finalmente estava entre eles. Era apenas uma questão de dias e a revolta seria proclamada, aproveitando a presença na cidade da multidão de adoradores. Uma espécie de coexistência pacífica vigorava entre líderes judeus e romanos. Os romanos não davam palpites sobre a religião dos judeus e esses, em contrapartida, não se envolviam em questões civis que diziam respeito à administração.

Mas, a coisa esquentou na páscoa do ano 31. E a causa principal não foi a dissimulada vontade de fariseus e zelotes de atacar os batalhões romanos e, se possível, destruir o inimigo. O assunto dominante passou a ser Jesus, filho do carpinteiro José e da dona de casa Maria. Pouco se sabia a seu respeito e esse pouco dizia que seus amigos mais chegados haviam sido recrutados junto ao mar da Galiléia, em pequenos vilarejos e até debaixo de árvores. Havia pelo menos um que havia sido cobrador de impostos, portanto, odiado pelo populacho. E outro que pouca coisa tinha em comum com o que chamavam Mestre, pois de longe transpirava orgulho e arrogância. Dos poucos nomes que guardei, o dele jamais esquecerei: Judas Iscariotes.

Pois bem. Faltavam três dias para a celebração da páscoa e, segundo o que logo se espalhou pela cidade, Iscariotes vendeu Jesus aos sacerdotes por 30 moedas. Os soldados do templo foram buscá-lo, à noite, no jardim de Getsemani, perto da vivenda de minha mãe. Eu estava por perto. Os santos do pau oco, os sacerdotes, simularam um julgamento de Jesus, homem simples e tranqüilo, que preferia o silêncio ante as acusações que lhe lançavam em rosto. Vendo que sua autoridade para tratar da questão era menos que zero, inventaram que Jesus era perigoso subversivo e pretendia derrubar o governo romano, assumindo o lugar de Pilatos. O argumento dos sacerdotes e líderes foi patético: “Não temos nenhum outro rei senão Cesar”.

O prisioneiro foi então encaminhado a Pilatos, que lavou as mãos. “Não tenho nada com esse justo”, teria dito. Mas o clamor da turbamulta orquestrada pelos sacerdotes foi ensurdecedor: “Cruficica-o! Crucifica-o!” Para acalmar os ânimos, Pilatos propôs a troca dos prisioneiros. Ofereceu o delinquente Barrabás para o suplício da cruz, mas a massa enfurecida rejeitou. Pilatos então chamou um centurião ordenando que a questão fosse resolvida sem demora.

Um longo cortejo marchou pelas ruas de Jerusalém até o lugar chamado Gólgota, uma encosta em forma de caveira fora dos muros da cidade. Aí Jesus foi pregado pelas mãos e pés na pesada cruz de madeira que ele próprio carregara nas costas. Acima de sua cabeça o centurião mandou pregar uma tabuleta com a inscrição: “Este é Jesus o rei dos judeus”.

Perto da hora nona, pouco antes do final do dia, Jesus disse suas últimas palavras: “Pai perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.

Compartilhe

Uma ideia sobre “Uma páscoa inesquecível

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.