18:38Sangue quente no chicote

por Ivan Lessa*

Está no lendário das colunas sociais: Truman Capote, Gore Vidal e Norman Mailer, em sarau literário, discutiam livros. Cada qual, evidentemente, falando de seus próprios livros. Capote, o mais baixinho e fisicamente frágil dos três, assim como de longe o mais venenoso, virou-se e disse (Capote era uma das poucas pessoas no mundo capazes de “virar-se” e dizer uma coisa): “Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é que eu escrevi uma obra-prima, e vocês não”.

Não é que o baixinho estava com toda a razão? O danado escreveu mesmo uma obra-prima. Sim, claro, estamos falando, como Capote, de A sangue frio.

Nascido em Nova Orleans em 1924, falecido na Califórnia em 1984, Truman Streckfus Persons adotou por conta própria, aos onze anos, em 1935, o sobrenome do padrasto, Joseph Garcia Capote, descendente de portugueses, para quem essas coisas são importantes. De 1941 a 1944, trabalhou como office-boy na editoria de arte da The New Yorker, berço esplêndido de tantos astros e estrelas do futebol literário norte-americano.

Acabou irritando o irritadiço poeta Robert Frost, o que lhe valeu a demissão. Em 1945, Capote publicou dois contos: um na revista Mademoiselle, outro na Harper’s Bazaar. Conto em revista, na época, era o equivalente a vender direito de filmagem para Hollywood. Além do dinheiro, dava cartaz. Em 1948, Capote publica Other voices, other rooms, romance gótico ambientado no sul dos Estados Unidos em que o texto perdia de longe, em matéria de escândalo, para a contracapa do livro: lá estava ele, lânguido como Claudette Colbert em Cleópatra (1934), estendido sobre o que só podia ser uma liteira. Com 24 anos, baixinho, voz escorrida como melado, decadente de estirpe, Truman Capote estava pronto para enfrentar e domesticar o mundo. Publicou a coletânea de seus contos, também góticos, A tree of night, em 1949, e um romance mais ligeiro, A harpa de erva, em 1951, que acabou virando primeiro peça e, já no século XXI, um infelizmente telefilme.

1958 é o ano que mais deve irritar Vidal e Mailer. Capote publica uma noveleta, Breakfast at Tiffany’s, que, três anos mais tarde, viraria filme-veículo para Audrey Hepburn e que, no Brasil, passou com o estonteante título de Bonequinha de luxo, como se fosse gravação dos Anjos do Inferno ou filme de Gilda de Abreu. O livrinho vendeu mais que os lendários e inexplicáveis “pãezinhos quentes”. Capote é festejado.

Festejadíssimo. E gosta, gosta muito das festas, festinhas e festivais em sua homenagem. Vira astro de coluna social, figura indispensável em reuniões de aquilo que já foi chamado, por nós, de “café-society”: alta sociedade e até mesmo grã-finos, para se ter uma idéia de como o mundo é engraçado. Capote não percebeu, escondido nas mãos que o afagavam, cobertas por longas luvas de veludo, o punhal escondido, nem pressentiu o gesto à procura do chicote.

1959. Possivelmente meio de ressaca, depois da festa na noite anterior, Capote folheia o – claro – The New York Times. Sabe-se lá que musas (mais sobre elas daqui a pouco) fizeram com que seus olhos se detivessem sobre uma pequena nota de dois parágrafos sobre como o sr. e a sra. Herbert W. Clutter, mais filho e filha, todos da cidade de Holcomb, no estado de Kansas, o mesmo de Dorothy, Toto e do Mágico de Oz, haviam sido brutalmente assassinados. Capote, segundo seu próprio relato, bolou que isso poderia dar num bom livro sobre crime e sobre um estado que desconhecia, o Kansas.

Fez as malas e partiu para Holcomb na companhia de sua amiga, a também escritora (e boa) Harper Lee, aquela daquele filme com o Gregory Peck, To kill a mockingbird (1962), e o romance de título idêntico, ganhador do prêmio Pulitzer, nenhum dos quais, insista-se, recebeu o título de O sol é para todos – isso é desses massacres que só acontecem no Brasil. Frise-se: quando Capote e Harper Lee partiram para o Kansas, os assassinos ainda eram desconhecidos e não haviam sido capturados.

Ah, sim. As musas. The muses are heard. 1958. Reportagem, por assim dizer. Capote acompanhou a excursão à União Soviética de uma montagem de Porgy and Bess (a produção passou pelo Municipal do Rio), sob o patrocínio do Departamento de Estado, como parte de intercâmbio cultural entre Estados Unidos e o então Reino do Mal. Foi publicado na The New Yorker, para variar, talvez a única revista no mundo, mesmo até os dias de hoje, que banque e encoraje a prática de alguma forma, mesmo e inclusive, nova ou inovadora de expressão artística. Nela, Capote afiara seus pequenos dentes de piranha de jornalista, conforme atestam seus inúmeros perfis para a revista. As maldades dele com Marlon Brando, durante as filmagens de Sayonara (1957), são, como tanta coisa do homenzinho, antológicas.

Em Holcomb, no Kansas, a figura dramaticamente urbana de Truman é quase tanto motivo de choque quanto o brutal crime múltiplo. Harper Lee lhe foi utilíssima para angariar a confiança e abrir as comportas do papo entre as pessoas entrevistadas. Capote sabia ouvir. Isso lhe foi útil na pequena cidade e em meio à sociedade, que tanto admirava e cultivava, de Manhattan. Capote, um conquistador nato, acabou hipnotizando (é o único verbo possível) os habitantes-chave de Holcomb. Presos os dois assassinos, conseguiu ter acesso a eles e – seria identificação? – aos trejeitos psicológicos que aproximam dois homossexuais, se um quê homossexual tivesse Perry Smith. Há teses a respeito – acabou íntimo de Perry, ele também pouco mais que um anão, como Capote.

Capote passou ao todo um ano e meio no Kansas examinando aspectos da “história” e conversando com quem podia, principalmente os “dois meninos”, como os chamava. Depois foram quase cinco anos de quebrar pedreira, ou geleira, em Verbier, nos Alpes suíços, onde possuía um pequeno chalé. O tom jet-set, tão ao gosto do pobre Capote, foi dado pelo resto do trabalho, efetuado em Brooklyn Heights, onde era dono de um apartamento.

Consta que Capote passou um desses seis anos apenas trabalhando nas notas, burilandoas, antes de escrever uma única linha do livro (que ainda não fora batizado como “nonfiction novel” ou “romance sem ficção”). Sempre segundo Capote, ele já delineara o livro inteiro em sua mente, exceto pela última parte, aquela que ele chamava de “a dispensação” do caso. Ainda no departamento do “consta” (Capote, infelizmente, mentia furiosamente. Dele também a invenção, pode-se dizer, da “vida-com-ficção”.): ele garantia, em todos os seus depoimentos e entrevistas, ser capaz de memorizar horas de conversa, tendo treinado para isso com um amigo, que lia trechos de um livro e ele, Capote, depois, acertava lá por volta dos 95% do texto. Era sua maneira de dispensar o uso do odioso gravador, talvez o maior inimigo do bom jornalismo. Consta (sempre e novamente) que Capote não lançou mão de 80% de suas pesquisas. Consta que se tivesse publicado 20% do material acumulado naqueles anos de entrevista acabaria com um livro de mais de 2 mil páginas. Há uma infinidade de “consta” na vida de Capote.

Na obra, para felicidade geral, nada consta, a não ser talvez o melhor texto da literatura e da reportagem americana do século XX.

Truman Capote batizou seu livro de “romance sem ficção”. Para ele, jornalismo era apenas fotografia literária. Ele ambicionava algo mais. Um gênero só para ele. Não achava que Hiroshima, de John Hersey, pudesse ser comparado com A sangue frio. Para ele, o livro de Hersey era, claro, criativo, no sentido de que não coletara gente falandopara um gravador, sofrendo depois um processo editorial. Hiroshima era jornalismo clássico, assim como Children of Sanchez, de Oscar Lewis, era um documentário extraído de fitas gravadas e, por mais engenhosas e comoventes, não constituía um livro criativo. Seu modelo, beirando o ideal, era Lillian Ross e o que ela fizera com Picture, extraordinária reportagem literária em que ela acompanhara John Huston e a filmagem de uma adaptação do romance The red badge of courage, de Stephen Crane. Claro que fora primeiro publicada em – é evidente – The New Yorker. Outros que chamaram a atenção estética de Capote: Joseph Mitchell, o texto escarrado (“emblemático” é a mãe) da New Yorker e, isso é curioso, a inglesa Rebecca West. (Curioso Capote não morder nenhum dos citados. É definitivo e antológico seu julgamento sobre as sandices perpetuadas pelo pobre do Jack Kerouac. Quando confrontado com o terrível On the road, Capote foi ao âmago da questão: “Isso não é escrever. Isso é bater à máquina”.)

A sangue frio foi lançado em início de 1966, virou estrondoso sucesso de crítica e vendas, desfrutou das vantagens de ser o livro do mês e para comemorar o sucesso e a recém-adquirida fortuna, o bom e leviano Truman Streckfus Persons deu o que até hoje é considerado o baile do século passado: o Black and White Ball, no Hotel Plaza de Nova York. Baile e autor foram considerados clássicos instantâneos. Assim como nas últimas páginas de A sangue frio, encerremos em ritmo de fuga, citando o não muito digno de confiança Capote (ele não disse nada sobre a tradução ou o uso de citações):

“Um dia, comecei a escrever, sem saber que me acorrentara por toda vida a um senhor nobre porém implacável. Quando Deus lhe dá um dom, ele também lhe dá um chicote; e o chicote se destina apenas à auto-flagelação… Estou aqui sozinho na escuridão de minha loucura, sozinho com meu baralho – e, é claro, o chicote que Deus me deu”.

Hum. Capaz.

*Apresentação do livro “A Sangue Frio”, de Truman Capote, cuja tradução também é de Ivan Lessa

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