6:57O coronel, os intelectuais e a cadeia

por Luiz Manfredini*

Comentou-se, à época – março de 1978 – que o general Ernesto Geisel, então presidente da República, passou mal (com vômito e tontura) ao se deparar, no Jornal do Brasil, com as ferinas críticas que lhe foram endereçadas por um subordinado, o tenente-coronel Tarcísio Nunes Ferreira. A informação jamais foi comprovada, mas inegável que a entrevista do militar – ácida contra Geisel, contra o que considerava desvios do “movimento militar de 1964” e a favor da abertura do regime – causou, digamos, certo frisson na caserna.

Não por menos: pela primeira vez desde o golpe um militar da ativa criticava abertamente o “status quo”. E não um militar qualquer. Este comandava o 13o Batalhão de Infantaria Blindada, a mais poderosa unidade da 5a Região Militar (Paraná e Santa Catarina), com sede em Ponta Grossa, a pouco mais de 100 quilômetros de Curitiba.

A entrevista de página inteira realizada por mim, então repórter da sucursal paranaense do Jornal do Brasil, e publicada há exatos 35 anos, em 11 de março de 1978, desenvolvia o que o coronel já defendera para cerca de 200 membros do Lions Club de Ponta Grossa uma semana antes. A palestra, que valeu a Tarcísio prisão domiciliar de dois dias, inaugurou o curto período de três semanas em que o País se agitou a partir de Curitiba, pois à palestra e à entrevista sucederam nova detenção do militar, dessa feita de 30 dias, o sequestro de uma professora por um grupo paramilitar e a prisão de 11 intelectuais pela Polícia Federal, acusados de ensinar marxismo-leninismo a crianças em duas pré-escolas. Sobretudo estas prisões provocaram grande mobilização da opinião pública, não só na capital paranaense, como em todo o Brasil, com expressiva repercussão internacional.

Os episódios daquele março turbulento em Curitiba marcaram um capítulo a mais, talvez um capítulo decisivo da conflagração entre duas alas do regime militar – conhecido então como “o sistema” –, divididas entre os defensores da “distensão lenta, gradual e segura” do presidente Geisel e os que se opunham a ela, a chamada “linha dura”. Meses antes, em outubro de 1977, os duros haviam sofrido importante revés com a demissão do general Sylvio Frota do Ministério do Exército.

Fiel, mas crítico

Aos 47 anos na época, 26 dos quais dedicados ao Exército, o Coronel Tarcísio Nunes Ferreira deixou clara sua “fidelidade aos ideais do movimento de 31 de março de 1964”, mas criticou o que considerava sua deformação: “Nós saímos de um processo totalitário que se tentava, através do governo, pela desordem, para um processo totalitário feito pelo governo, pelo excesso de ordem”. Para ele, “numa sociedade o que é preciso é a harmonia, e não a ordem”.

Na longa entrevista, o coronel defendeu a imediata abertura democrática no país, com pluripartidarismo (mas sem a participação do Partido Comunista), quebra dos instrumentos de exceção dos quais a ditadura ainda se valia, anistia e até mesmo uma assembleia constituinte. E endereçou ao presidente Ernesto Geisel críticas corrosivas. Opôs-se ao seu conceito de democracia relativa e aos poderes imperiais da Presidência.

Mas certamente o que mais repercutiu foi a exortação: “É preciso que, de alguma forma, os militares quebrem o silêncio” para defender o que Tarcísio considerava pensamento hegemônico nas forças armadas, ou seja, a abertura democrática. Mais grave foi o militar sustentar que “há momentos em que se justifica a quebra da disciplina em nome da legitimidade”, principalmente quando “estão lançando nos nossos ombros a culpa de todos os erros que estão aí patentes”. Era incitação à rebeldia militar, logo naqueles tempos bicudos.

Nunca se soube o quanto Tarcísio Nunes Ferreira estava ligado a outros setores militares e civis. Ao longo do tempo, ele atribuiria sua entrevista a iniciativa meramente pessoal. Mas sempre foi intrigante o fato dele praticamente escolher o Jornal do Brasil para conceder a entrevista, combinando inclusive a data da publicação. Sobre um móvel da sala de sua casa, observei um punhado de bilhetes aéreos. Na ocasião o coronel negou que fizesse viagens pelo Brasil. Mesmo assim, alguns analistas o viram simpático à candidatura presidencial do ex-governador de Minas Gerais Magalhães Pinto, tido como o líder civil do golpe de 1964. Três meses depois da entrevista, um dos mais entusiastas apoiadores do coronel, o ex-ministro Ivo Arzua Pereira, aderia à Frente Nacional de Redemocratização, capitaneada por Magalhães e Tancredo Neves. A Frente desembocaria na candidatura do general Euler Bentes Monteiro contra a do também general João Batista Figueiredo, patrocinada por Geisel.

Sequestro e prisões

No final da tarde de sexta-feira, 17, o coronel já cumpria, no 5o Grupamento de Artilharia de Campanha, no bairro do Boqueirão, a pena de 30 dias de detenção que recebera por conceder a entrevista, quando paramilitares sequestraram a jornalista e professora Juracilda Veiga na saída do colégio Cônego Camargo, onde lecionava. Treze horas depois, no amanhecer de sábado, a Polícia Federal prendia 11 pessoas ligadas às escolas Oca e Oficina, de educação infantil. Além de mim, estavam presos o também jornalista Walmor Marcelino, o advogado Edésio Passos, o engenheiro Paulo Sá Brito, os publicitários Reinoldo e Sueli Atem, o professor Léo Kessel, a pedagoga Silvia Magalhães e as sociólogas Bernadete Zaneti Sá Brito, Lígia Mendonça e Ana Lange. Segundo nota oficial da PF, “as escolas vinham doutrinando crianças dentro de princípios marxistas, desenvolvendo-lhes uma visão materialista e dialética do mundo, incutindo nelas a negação de valores como a religião, a família e a tradição histórica”.

É provável que os acontecimentos não tenham sido tramados intencionalmente, mas trocaram influências recíprocas. Os detidos no caso das pré-escolas foram escolhidos a dedo entre aqueles com mais extensos antecedentes na luta contra a ditadura. No meu caso, por exemplo, eu havia tido com a escola Oficina uma relação meramente pontual anos antes, mas meu prontuário na polícia política e o fato de haver entrevistado o coronel de Ponta Grossa, ajudavam os duros do regime e comporem seu raciocínio: a ditadura não poderia retroceder, pois os subversivos – como eram chamados, na época, os opositores mais firmes – tanto se mantinham atuantes que agora se infiltravam até em pré-escolas e açulavam militares contra seus superiores.

Mas ocorreu o que, para a “linha dura”, era inesperado: a instantânea, larga

e intensa reação da sociedade. O sequestro de Juracilda Veiga, embora sem

relação aparente com as prisões, colocou no cenário a Igreja Católica, pois a

professora e jornalista era militante das comunidades eclesiais de base. Não

podendo solidarizar-se apenas com Juracilda, o clero local esteve à frente das

mobilizações por todos. Nas missas celebradas no domingo, 19, nas mais de

cem paróquias de Curitiba, foi lida uma carta-aberta à população assinada pela

Comissão de Justiça e Paz do Paraná e outras 34 organizações da sociedade

civil, reunidas em assembleia permanente na Cúria Metropolitana. A carta

manifestava preocupação com o “clima de terror e insegurança”. Exigia a

imediata libertação dos presos, esclarecimentos sobre o sequestro de Juracilda

Veiga e “apuração de atos ilegais do clandestino Comando de Caça aos

Comunistas”.

Protestos com humor

As prisões em Curitiba ecoaram por todo o Brasil, provocando condenações

generalizadas. A imprensa, cujos patrões naquele momento já começavam a

se descolar do projeto dos militares, que eles apoiaram em 1964, repercutiu

à larga os acontecimentos. Curitiba ficou coalhada de correspondentes dos

jornais nacional. A inglesa Patrícia Feeney, coordenadora do Departamento

de Pesquisa Internacional para a América Latina da Anistia Internacional,

aportou na cidade para melhor acompanhar os fatos. Mais de oito mil

telegramas chegaram do exterior e de vários estados à sede da Polícia Federal,

pedindo liberdade para os detidos.

Além da violência, o episódio continha também boa dose de ridículo. A

alegação de que os 11 detidos ensinavam marxismo-leninismo às crianças

das duas pré-escolas foi logo incorporada ao anedotário nacional. Luiz

Fernando Veríssimo produziu uma hilária “cartilha marxista” que estaria

sendo aplicada aos meninos e meninas de Curitiba. Em sua coluna do Jornal

do Brasil, o poeta Carlos Drumond de Andrade noticiou declarações do

garoto Fifico, de três anos e meio de idade, segundo as quais sua professora

trocou o livro “Circo de Coelhinhos”, do escritor Marques Rebelo, pelo

“O Capital”, de Karl Marx. “Marques e Marx, tudo é a mesma coisa”, teria

alegado a professora. No mesmo Jornal do Brasil, Carlos Eduardo Novaes

em longa crônica intitulada “A subversão infantil”, informou que, nas duas

pré-escolas de Curitiba, as aulas começavam com historinhas que poderiam

ser “Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Reacionário”, como “A Branca de

Neve, Lacaia do Capitalismo, e os Sete Anões Explorados” ou ainda “Pluf, o

fantasma do imperialismo”.

Entre humor e protestos políticos, a pressão foi tal que os detidos acabaram

sendo soltos já a partir do terceiro dia após as prisões. Uma semana depois, no

domingo, 26, os três últimos deixaram a cela: eu, o também jornalista Walmor

Marcelino e o advogado Edésio Passos. Juracilda Veiga permaneceu 24 horas

nas mãos dos sequestradores, sempre encapuzada, sofrendo choques elétricos

e ameaças em dez 10 longos interrogatórios. O coronel Tarcísio Nunes

Ferreira deixou o 5o Grupamento de Artilharia de Campanha em meados de

abril, sendo transferido para uma função burocrática em Recife, a do serviço

militar. Em 1995, o jornalista, escritor e cineasta Valencio Xavier narrou as

prisões no premiado vídeo-documentário “Os Onze de Curitiba – Todos

nós”.

O revés na capital paranaense, no entanto, não impediu que a extrema-direita

voltasse a agir. Explodiu bombas em bancas de jornal de várias capitais, nas

sedes da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados

do Brasil (OAB), no Rio, ameaçou, sequestrou e espancou lideranças da

oposição e, em 31 de abril de 1981, uma bomba detonou por acidente no colo

de um dos terroristas – um capitão do Exército – antes que ele a armasse nas

instalações do Riocentro, onde cerca de 20 mil pessoas comemoravam o 1º de

Maio.

Mas as ações da extrema-direita – a “linha dura” militar e seus aliados civis

– não impediram a progressiva decomposição da ditadura, que prosperava

já desde meados da década de 1970. O prenúncio da derrocada ocorreu nas

eleições de 1974, quando o MDB – o partido de oposição no bipartidarismo

consentido pelos militares – derrotou fragorosamente a governista Arena.

Para se ter uma ideia, o MDB passou de sete para 20 senadores e de 87

para 165 deputados federais. A sociedade civil começava a se posicionar

francamente contra a ditadura, o que se confirmou nas maciças reações

à morte do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho,

nas dependências do DOI-CODI paulista, em outubro de 1975 e 1976,

respectivamente.

Quando o coronel Tarcísio Nunes Ferreira concedeu a entrevista, os

estudantes já tratavam de reorganizar a UNE, o que ocorreria em 1979.

Exatos dois meses depois dos episódios de Curitiba, a greve dos trabalhadores

da Scania, no ABC paulista, marcava o reingresso do movimento operário na

cena política brasileira. Despontava ali a liderança do metalúrgico Luiz Inácio

Lula da Silva. A ditadura já não tinha como manter instrumentos de exceção

como o AI-5, afinal revogado em dezembro de 1978. Daí em diante o regime

dos militares despencou ladeira abaixo, sem poder resistir à pressão popular.

Seguiu-se a anistia, em agosto de 1979, as eleições diretas para governadores,

em 1982, o gigantesco movimento das Diretas-Já, em 1984 e, no ano seguinte,

a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. A ditadura perdia-se diante

da forte oposição no terreno que ela própria criara para se preservar.

*Luiz Manfredini é jornalista e escritor em Curitiba, representa no Paraná a Fundação Maurício Grabois e é autor de “As moças de Minas”, “Memória de Neblina”, “Sonhos, utopias e armas” e “Vidas, veredas: paixão”.

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7 ideias sobre “O coronel, os intelectuais e a cadeia

  1. Coronel Perseu Jacutingassa

    Tudo isso, para depois de décadas os então democratas e amantes da liberdade serem ascendidos ao poder, portando a esperança de milhões. Tudo isso para depois os políticos “de esquerda” se revelarem….políticos. Tudo isso para acontecer a maior decepção, se elevando a corrupção ao status de prática aceitável…Tudo isso para hoje a UNE ser só um gremio estudantil com as costas curvadas ao líder petista da vez. Agora os perseguidos da ditadura estão lavando a égua com dinheiro publico, se lambuzando de poder. Tudo isso para que hoje houvesse uma estranha saudade dos militares no poder…Tudo isso para encenar uma peça gigantesca de teatro, baseada fielmente no livro “A Revolução dos Bichos” de Orwell. ..

  2. Tanso

    Muito boa a resenha. Parabéns ao Manfredini por nos posicionar em relação aos fatos e refrescar a memória daqueles que fazem como a maioria, ou seja, esquecem.

  3. Parreiras Rodrigues

    Camarada Manfredini: Obrigado pelo artigaço. Um registro resumido e que serve prá atiçar a memória que, como brasa, se não ser abanada, apaga, vira cinza.

    Assisti Os Onde de Curitiba, ao lado da minha professora de Português no Ginásio de Santa Isabel do Ivai – 1959-1962, a baiana Lígia de Moura Pires, que veio da Bahia, especialmente prá sessão.

    Dona Lígia, que morreria poucos anos depois, já em Campo Grande – MS, era viúva do terceiro prefeito nosso, o sr. Leônidas Pires. Lígia e Leônidas eram os pais da professora Silvinha, uma das “artistas”.

    Lêonidas, farmacêutico – que quando não estava lendo, estava arrumando os óculos para ler, tinha sido eleito pelo PTB.

    João Goulart tinha uma fazenda em Santa Isabel do Ivai, mas “era” do sr. Luiz Quintiliano.

    Na Santa Roza tinha escolinha – a professora morava lá mesmo, salinha de enfermagem, pronto socorro, armazénzinho de fornecimento a preço de custo, dois em dois meses, vinha um prático prá dar uma geral nos dentes dos moradores, as casas todas de alvenaria, campinho de futebol.

    Na primeira safra do café, cada porcenteiro, dependendo do tamanho da “forma”, ganhava o suficiente prá comprar os seus dois, três primeiros alqueires de terra. Um tipo de reforma agrária onde a propriedade da terra era fruto da dignidade do trabalho, não da usurpação da propriedade seguida da “sensibilidade do governo”.

    Leônidas tinha tudo prá fazer coisas, mas ai estourou o golpe de primeiro de abril de 64.

    Ney Braga riscou Sanza do mapa do Paraná, até a coletoria federal transferiram para Loanda. O IBC, que Nelson Maculan ia montar lá, foi pro vizinho também, que nem café tinha. Sanza era o terceiro maior produtor de café do Paraná e o sexto do Brasil.

    Voltando: Os milicos, marxizaram Piaget, o pai do método pedagógico que leva o seu nome, foi não, Manfredini?

  4. Boca do inferno

    Só mudaram as moscas… a M* que estão fazendo é a mesma, se não for pior…

  5. tirana

    O Manfredini tem mesmo que refrescar a memória. A entrevista do Cel. Tarcisio Nunes Ferreira não foi concedida apenas a Manfredini. O coronel foi fotografado, a pedido do militar, diante de sua casa, cortando hortências, pelo Carlos Sdroyewski, então fotógrafo do Jornal do Brasil e que cedeu também as fotos à Revista Veja. O outro repórter também era da Veja e ele e Manfredini degravaram a entrevista num apartamento de um Hotel de Ponta Grossa. O JB publicou no domingo e a Veja na segunda. Uma Brasília amarela da sucursal da Veja levou os três e na esquina da Av. Batel com A BUenos Aires ainda bateu no carro de uma mulher. Lembrou Manfredini?

  6. Emerson Paranhos

    È isso aí “tirana” tem que refrescar a memória desses “heróis”. Manfredini se candidate a uma bolsa ditatuira. Voce merece.
    Mas, que ditadura de “bananas”: Prende e deixa os padres lerem protesto na missa. Solta com 24 horas…só faltou pedir desculpas.
    Aqueles CARAS PRECISAVAM FAZER UM ESTÁGIO EM CUBA NAQUELA ÉPOCA, para aprenderem a se portar como verdadeiros ditadores e não como bananões.

  7. Ivan Schmidt

    Boa Manfredini! Lembro-me que os jornais publicaram no dia seguinte à despedida do coronel Tarcísio, da tropa perfilada do quartel de P. Grossa, que a banda militar lascou a marcha “Pombo correio”. Pano rápido!

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