12:16A bicicleta azul

Ilustração: Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

Tive uma bicicleta azul. Sem freios. Na descida, enfiava o pé direito no pneu traseiro. A magrela relinchava sob o atrito da sola do bamba, kichute ou chinelo de dedos. Amansava a fúria na marra. Bem cedo, a neblina na cara, despencava pela ladeira em direção à fábrica de móveis de bambu. A marmita sacolejava na mochila às costas, à espera da fome que sempre chegava. O freio quebrara na caixa do pedal — quase impossível consertar. A herança me chegou estropiada. Antes um trajeto desgovernado pelas encostas da infância que alguns quilômetros a pé. Aos treze anos, chegava ofegante ao trabalho, com lascas ardentes na sola dos pés. Às oito da manhã, o maçarico e a estopa úmida de diesel me esperavam. Por volta das seis da tarde, deixava-as a um canto. No outro dia, estariam me esperando. Fazia cadeiras, mesas, sofás e cabideiros, sempre com a sensação de que um pneu de bicicleta me arranhava o pé direito.

No terreiro ao lado do bar do Gábito, o irmão me ensinava a andar de bicicleta. Ele era bom. No selim pelado — puro metal — meu corpo desajeitado e magricelo. As habilidades motoras me tornavam um pândego aprendiz. Tomava o caminho da cerca de madeira. A bicicleta esmagava meus ossos aparentes. O irmão ralhava comigo: “Você não consegue mesmo”. Catava a bicicleta e me equilibrava. Vai. Eu ia sem direção. No boteco, o impacto das bolas de bilhar divertia os adultos. Spock — sim, o orelhudo da série Jornada nas Estrelas — ria feito uma besta. Eu era o motivo da graça. As orelhas de abano renderam o maldoso apelido ao único filho do botequeiro. Ele se chamava Vanderlei. Spock é mais simpático. Spock. Teria aprendido com mais facilidade caso fosse uma bicicleta de verdade. Era apenas um arremedo, uma caveira metálica. Encontramos a carcaça abandonada no mato. Não tinha pneus. O aro de metal — mais oval que redondo —, em contato com o chão de pedras, destruía qualquer equilíbrio. Nossa espaçonave à deriva por uma galáxia de pedregulhos.

A quadra de cimento é lisa e plana. Meu filho é pequeno. Tem quase quatro anos. Pedala com vigor e disciplina. A bicicleta é amarela. Tem rodinhas laterais para manter o equilíbrio. Tem freios. No selim macio, um palhaço sorri. De mim, talvez. Meu filho está aprendendo. Orgulha-se da força e sincronia das pedaladas. Atravessa a quadra de uma trave à outra com desenvoltura. Eu o acompanho de perto. Entre nós, minha filha passa em sua bicicleta cor-de-rosa. Também tem rodinhas laterais. Ela não precisa da minha ajuda. Pedala e sorri. Reclama que o pneu da frente está murcho. Deixo-os com o vizinho que brinca com a filha. Coloco a bicicleta no carro. Vou ao posto de gasolina. Encho o pneu e retorno. Com o pneu cheio, a bicicleta e minha filha desfilam com mais rapidez. Quando cansam de pedalar, invadem o parquinho cujo piso é de grama sintética. Escorregam, pulam, sobem, descem, se balançam. Do outro lado do portão, os carros passam em alta velocidade pela via rápida. O porteiro controla a passagem de moradores e visitantes. O condomínio custa oitocentos reais por mês. As bicicletas dos meus filhos foram compradas numa loja especializada. São novas e têm pneus.

A muito custo, aprendi a andar de bicicleta. Não gostava quase nada. Para desespero do irmão, que trabalhou a infância toda para comprar possantes magrelas. Lembro de uma tal BMX. Até hoje não sei o significado da sigla. Nada, possivelmente. Na corcunda da BMX, o irmão saltava obstáculos, dava piruetas, freava com estilo, riscava a estrada de terra feito um louco. Nunca entendi o prazer de viver esfolado. Depois, ele aprendeu sozinho a dirigir. Um dia, já adulto, chegou em casa ao volante de um velho fusca. Comprei. Nem sabia que você sabia dirigir. Nem eu. E gargalhou com o cigarro no canto da boca. Aprendi a dirigir com quase trinta anos. Fui à autoescola. O irmão já não estava ao meu lado. Acho que só esteve durante as improvisadas aulas na bicicleta sem pneus. Depois, nossos caminhos nunca mais se cruzaram. Ele não tem bicicleta. Eu tampouco.

Todo ano, voltávamos à roça. A avó nos esperava à beira do fogão a lenha. No dia da viagem ao interior de Santa Catarina — férias do trabalho e da escola —, catei a bicicleta azul para dar umas voltas pelo bairro. Até hoje não entendo o que aconteceu. Na porta de casa, desgarrei-me ladeira abaixo. Atrapalhado, não consegui domar a bicicleta com o pé direito. Parei no barranco. O irmão apenas me olhava do alto. Aro da frente e quadro retorcidos. A bicicleta se transformara numa cedilha azul. Meus joelhos ardiam. Meus testículos doíam. As mãos arranhadas latejavam. Quase chorei. Mas não ficaria nada bem um homem de treze anos chorar diante do irmão mais velho.

Na volta das férias, fiz ainda algumas vezes a pé o trajeto até a fábrica de móveis. Não durou muito. Em breve, estava trabalhando numa dental no centro de Curitiba. Entregava material odontológico o dia todo. No fim da tarde, roubava um chocolate Charge no Mercadorama da Praça Tiradentes. E tomava o ônibus até o colégio. Tinha quatorze anos. Nunca mais andei de bicicleta.

Pretendo comprar bicicletas novas aos meus filhos. As atuais estão encolhendo. Bicicleta de criança encolhe com muita rapidez. Agora, sem rodinhas laterais. Já estão preparados para vários tombos até que encontrem o equilíbrio necessário. Meu filho garante que, quando for um homem grande, comprará duas Harley-Davidson — uma grande para ir trabalhar; e uma pequena para passear. Eu digo que não sei pilotar motos. Eu te ensino, papai. Enquanto as Harley não chegam e meu filho ainda é um homem pequeno, comprarei em breve uma bicicleta moderna para mim, com pneus e freios. Sempre vejo os pais passeando de bicicleta com os filhos. Parece divertido.

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Uma ideia sobre “A bicicleta azul

  1. Elton

    Com trinte e seis anos, passei pela mesma experiência do irmão do Rogério com minha BMX (nunca imaginei que pudesse ter algum significado estas três letras) comprada com muito custo por minha mãe para que eu pudesse fazer alguns serviços para ela. Hoje tenho a minha bicicleta “moderna”, com freio adisco, suspensão e escambau, meu filho (dez anos) também tem a sua mas só quer pedalar quando eu não quero e vice versa, minha filha (dois anos) vai na cadeirinha e adora mais pedalar para dar pipoca aos patos no parque barigui.

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