7:47Empáfia e arrogância

por Ivan Schmidt

Muita tinta ainda será gasta na tentativa de dar tratos finais à etiologia da eleição de Renan Calheiros (PMDB-AL) à presidência do Senado. Talvez a maior dificuldade dos analistas seja “explicar” as marchas e contramarchas do episódio, sob o enfoque da ética.

Eles podem começar pela enquete realizada pela Folha de S. Paulo, publicada na edição de quarta-feira (5), com os 78 senadores que participaram da sessão que elegeu Renan. O jornal descobriu que pelo menos seis senadores mentiram, pois declararam o voto em Pedro Taques (PDT-MT), que obteve 18 votos no total apuração. Para o jornal, entretanto, 24 senadores afirmaram ter optado pelo candidato opositor a Renan.

Compreende-se, mesmo a contragosto, porque infelizmente está mais do que provado que o exercício da ética não é virtude das mais prezadas entre políticos brasileiros. Está aí mais um escabroso exemplo de como se conduzem questões importantes para o Congresso, tais como a eleição das mesas diretoras de ambas as casas.

Nas duas situações, os parlamentares eleitos para a presidência da mesa, respectivamente, senador Renan Calheiros e deputado Henrique Eduardo Alves, este do PMDB do Rio Grande do Norte, chegaram à função debaixo de verdadeira tempestade de acusações e denúncias de malfeitos. Renan, inclusive, acabou denunciado ao Supremo Tribunal Federal (STF), pelo procurador geral da República, Roberto Gurgel, da prática de peculato, falsidade ideológica e apresentação de notas fiscais frias. Sobre o presidente da Câmara, uma das acusações que pesam sobre ele foi ter beneficiado, via emendas de sua autoria, a empresa de ex-assessor de seu gabinete.

Ao procurar informações no endereço declarado pela citada empresa, o repórter da Folha encontrou uma residência abandonada, cuja guarda estava confiada ao bode Galeguinho. Este se negou terminantemente a fazer quaisquer declarações ao solerte jornalista, mesmo tentado com copiosa porção de capim colhido no matagal vizinho.

Nada disso impediu a eleição de Henrique Alves, que já está há 42 anos na Câmara, assim como a maioria dos senadores fez vista grossa aos deslizes que recheiam a biografia de Renan, fazendo-o retornar ao cargo do qual apeou em 2007 pressionado pelo rumoroso caso da filha que teve numa relação extraconjugal com uma jornalista de Brasília, cuja pensão alimentícia era paga com dinheiro providenciado por lobista. Nenhum dos dois admite uma nesga de culpa.

A essa altura, apenas para refrescar a memória, seria oportuno refletir sobre alguns conceitos elementares do comportamento ético de homens públicos, buscando o auxílio de especialistas como Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores (governo FHC), professor de direito internacional público e filosofia do direito na USP e autor de vários livros sobre temas afins.

No brilhante ensaio inserido no livro Ética, organizado por Adauto Novaes (Companhia das Letras, SP, 2007), citando a filósofa Hannah Arendt (de quem foi aluno), Celso Lafer lembrou que “a veracidade nunca foi considerada virtude política, pois as mentiras, neste campo, têm sido tradicionalmente consideradas justificáveis, dependendo das circunstâncias”.

Disse ele que muitos desenvolveram “a capacidade de pensar que as coisas podem ser diferentes do que são para poderem ser mudadas”, alertando que a “mesma imaginação que permite contestar os fatos para se poder ter a iniciativa de transformá-los permite desconsiderá-los, o que, em outras palavras, quer dizer que a capacidade de mudar os fatos e a capacidade de negar os fatos através da imaginação estão inter-relacionadas”.

Assim, o professor conclui que a mentira, especialmente a que viceja entre os homens que atuam e agem politicamente não é acidental: “A falsidade deliberada lida com fatos contingentes; com assuntos que não carregam no seu bojo uma verdade inerente, e não têm um corpo definido com a clareza da evidência. Por isso, são vulneráveis. Fatos necessitam testemunho e testemunhas confiáveis para serem estabelecidos, pois sempre comportam dúvidas. Por isso, a mentira é uma tentação, que não conflita com a razão, porque as coisas poderiam ser como o mentiroso as conta”.

Lafer acrescenta que, muitas vezes, a proteção da verdade factual é buscada pelo uso da mentira, sendo esta na definição de Tomás de Aquino “o ato de quem pretende, enganando, induzir em falsidade a opinião alheia”.

A democracia, segundo o ex-ministro, se caracteriza por uma visão de mundo baseada no respeito pelo outro, pelo princípio da legalidade, do controle e da responsabilidade do poder, que exigem que os governantes sejam expostos à luz pública para o efeito específico das avaliações dos governados. Por isto, “contrasta com a autocracia que se fundamenta na hierarquia paternal da desigualdade e na auto-referência solipsista da vontade da soberania e para a qual o ideal do poder é o poder do governante enquanto ser invisível que tudo vê e nada mostra”.

Em contraponto assaz pertinente ao espetáculo burlesco que a sociedade assiste hoje no Congresso Nacional, a sugestão de Lafer é pensar da seguinte maneira: “Porque a democracia se baseia no princípio da confiança e da boa-fé, e não no medo, ela sucumbe quando a esfera do público perde transparência e se vê permeada pelo segredo e pela mentira, que é o que ocorre quando a palavra esconde e engana, ao invés de revelar, conforme determina o princípio ético da veracidade”. A conclusão não podia ser outra: “É a mentira dos governantes que gera o ceticismo e a impotência dos governados, que não têm base para agir sem o alicerce da verdade dos fatos”.

A mentira pública como exceção requer uma avaliação pública de seu emprego, mas para que isto aconteça é necessário assegurar o direito à informação, na concepção de Celso Lafer, o antídoto ao uso abusivo da inverdade.

Portanto, a cidadania tem o direito à plena informação daquilo que é imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, resume o ensaio, indo além ao proclamar ser este “um instrumento jurídico necessário para domesticar a propensão ao realismo do poder do príncipe” e “como meio de conter a mentira dos governantes, uma expressão de justiça”.

Na versão alagoano-potiguar da ética e transparência na vida pública, contudo, estar o Congresso Nacional sob o comando de personagens cevados no que há de mais atrasado na política, ao invés de causar vergonha, é mais um motivo para festejar a empáfia e a arrogância.

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