10:16PEC 37: a resposta da Câmara ao mensalão

por Cristine Prestes*

Habitualmente, a resposta do Parlamento brasileiro à sociedade quando crimes contra a vida ganham repercussão nacional é o endurecimento da legislação penal – ainda que leis mais rígidas não levem, necessariamente, à redução da violência ou a punições exemplares. Em relação aos ruidosos casos de corrupção envolvendo políticos e empresários, a resposta do legislador nos últimos anos parece ser de ordem inversa – o abrandamento do combate ao crime do colarinho branco.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 37 é o mais recente exemplo disso. Apresentada pelo deputado federal Lourival Mendes (PTdoB-MA), ex-delegado de polícia do Maranhão que ocupou o cargo de secretário de Segurança Pública do Estado na década de 80, a PEC começou a tramitar na Câmara dos Deputados em junho de 2011 a partir da chancela de 207 membros da Casa, com amplo apoio de peemedebistas (33 assinaturas), petistas (31) e tucanos (20), mas com a rubrica de praticamente todos os partidos representados no Parlamento. Com a PEC, os deputados pretendem acrescentar um décimo parágrafo ao artigo 144 da Constituição Federal para proibir que o Ministério Público, seja federal ou dos Estados, promova investigações.

Em 21 de novembro do ano passado, no apagar das luzes do Congresso Nacional e faltando poucos dias para que o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrasse o julgamento do processo do mensalão – nas palavras tucanas, o maior escândalo da história do país, e na visão petista, apenas mais um caso de caixa dois em campanha eleitoral -, a comissão especial criada para analisar a PEC na Câmara dos Deputados aprovou a proposta, que em seu texto dá às polícias federal e civis dos Estados exclusividade na apuração de infrações penais.

A quem interessa que MP e polícias confrontem-se?

Não é a primeira vez que a investigação de um caso de corrupção de grandes proporções provoca reações em setores tradicionalmente desacostumados a responder por seus atos. Desde que foi incumbido, em 1988, de promover privativamente a ação penal no Brasil e zelar pelo respeito aos poderes públicos, o Ministério Público vem sofrendo as consequências das atribuições dadas a ele pelos parlamentares que elaboraram a Constituição Federal vigente.

Foi assim entre os anos 90 e 2000, quando o Ministério Público Federal detectou um desvio de R$ 169 milhões destinados à construção do Fórum Trabalhista de São Paulo. As investigações tiveram como foco o principal envolvido no esquema, o juiz trabalhista Nicolau dos Santos Neto, que acabou ganhando a pecha de Lalau, mas acabaram por tangenciar aliados de peso do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Incomodado com a insistência do procurador Luiz Francisco de Souza em investigá-lo, o ex-secretário geral da Presidência Eduardo Jorge Caldas Pereira iniciou uma cruzada para desmoralizá-lo, acusando sua filiação ao PT e seu interesse em apontar as armas ao PSDB. Em artigo de mais de quatro páginas na internet, o ex-secretário da Presidência afirma que arrepende-se do apoio que deu, durante a Constituinte, à proposta de independência do MP

Golpes mais diretos contra o chamado poder de investigação do MP foram desferidos na sequência, embora ainda hoje não se saiba se acertarão o alvo. A última sessão de julgamento do Supremo no ano passado foi destinada à análise de dois casos nos quais se questiona o tema. Em um deles, Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, suspeito de participação na morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel, em janeiro de 2002, tenta anular investigações do MP com o argumento de que essas cabem somente às polícias. Em outro, Jairo de Souza Coelho, ex-prefeito de Ipanema, no interior de Minas Gerais, investigado por descumprir decisão judicial para pagar precatórios, faz o mesmo. Em ambos, o Supremo ainda não definiu o destino do MP.

Também insurgiu-se contra o MP o ex-prefeito de São Paulo e hoje deputado federal Paulo Maluf, que responde a inúmeros processos por improbidade administrativa e tem seu nome e foto inseridos na lista de procurados da Interpol, a polícia internacional. Em 2007, após ser eleito deputado federal, Maluf usou seu mandato em causa própria ao apresentar um projeto de lei – conhecido por Lei da Mordaça – que prevê punição a procuradores e promotores que “agirem de má-fé” ao entrarem com ação contra políticos, numa clara tentativa de inibir o MP.

Destinados a combater o crime hoje existem as polícias e o MP, com estruturas enxutas e recursos escassos. À disposição dos acusados estão alguns dos advogados mais caros do país e um sem número de recursos previstos no Código de Processo Penal que garantem a ampla defesa e o devido processo legal previstos na Constituição, que juntos praticamente enterraram duas das mais importantes investigações criminais já levadas a cabo no Brasil.

Uma delas é a Operação Castelo de Areia, deflagrada em 2009 para investigar supostos crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, corrupção e financiamento ilegal de campanhas eleitorais que teriam sido cometidos pelo comando da empreiteira Camargo Corrêa. A outra é a Operação Satiagraha, de julho de 2008, que investigou supostos crimes financeiros cometidos pelo empresário Daniel Dantas, dono do Grupo Opportunity. Ambas tiveram início na PF e contaram com amplo apoio do MP na investigação dos fatos. Ambas foram contestadas nos tribunais superiores por renomados criminalistas contratados pelos grupos econômicos dos acusados. Ambas estão em vias de serem anuladas por completo caso o Supremo siga o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que considerou inválidas as provas obtidas pela PF e pelo MP.

Pergunta-se, então: a quem interessa que MP e polícias confrontem-se na disputa pela exclusividade da investigação criminal? Certamente não é ao cidadão que cumpre a lei e paga seus impostos. A este, uma lembrança: o médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão por estupro e atentado violento ao pudor de 37 pacientes de sua clínica de fertilização em São Paulo e hoje foragido, teve a denúncia contra si rejeitada na primeira instância da Justiça paulista em 2009. O argumento do juiz para negar a abertura do processo penal, decisão mais tarde revertida, surpreende pela facilidade com que relega a justiça a segundo plano em prol da burocracia: a investigação foi feita pelo MP, que não teria poder de investigação.

*Cristine Prestes é repórter especial  do jornal Valor

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6 ideias sobre “PEC 37: a resposta da Câmara ao mensalão

  1. Conde Edmundo Dantas

    Poderia eu dissertar sobre uma série de argumentos jurídicos e políticos para demonstrar que o Constituinte de 1988 não deu atribuições ao Ministério Público para investigar delitos, como também, uma série de razões de Direito, de fato e lógicas que não recomendam a Promotores e Procuradores a condução da apuração da infração penal. Contudo, busquei dentre as já inúmeras manifestações de juristas que condenam a investigação produzida pelo M.P, a que se apresentou de forma mais simples, didática e esclarecedora dentre as quais tomei conhecimento. Trata-se do editorial, datado de 28.11.2012, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCRIM, respeitado por seus posicionamentos em defesa do Direito Brasileiro e que aborda o tema com clareza meridiana.

    Digo, sem medo errar, que o respeito à Garantia da Ampla Defesa e da Presunção de Inocência, institutos sem os quais inexiste a democracia, estão sendo fustigados pelas inconstitucionais investigações produzidas pelo Ministério Público no Brasil afora e, a aprovação da PEC 37 é o caminho para voltarmos a ter uma investigação criminal isenta e equidistante das partes que integram o processo penal: a Defesa, representada pelo Advogado do réu e a Acusação, representada pelo Ministério Público. Abaixo o mencionado editorial:

    Editorial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM

    Publicado em: 28-11-2012

    Com grande preocupação o IBCCRIM tem acompanhado o empenho de representantes do Ministério Público, inclusive junto ao Supremo Tribunal Federal, em fazer prevalecer o entendimento de que possuem poderes de investigação criminal, apresentando-se aos olhos dos menos avisados como única instituição incorruptível e capaz de enfrentar o crime organizado.

    Para sustentar que dispõe de poderes investigatórios no âmbito penal, o Ministério Público serve-se de interpretação isolada e distorcida de incisos que integram o art. 129 da Constituição Federal. Aduz, ademais, que tais poderes são implícitos, já que são inerentes às suas funções constitucionais.

    Argumenta que a investigação criminal não é monopólio da Polícia Judiciária. E chega ao extremo de defender que quem pode o mais (promover ação penal pública) pode o menos (presidir inquérito policial), esquecendo-se de que as funções de investigar e de acusar são bem distintas. A esses argumentos acrescenta-se outro de ordem prática, freqüentemente explorado na imprensa: a ineficiência da polícia judiciária nas investigações penais.

    Outra vertente menor, reconhecendo tacitamente a inexistência desses poderes, objetiva emendar o texto constitucional para que dele conste, entre as funções institucionais do Ministério Público, a de promover a investigação criminal.

    O problema é que sob nenhum prisma, de que se examine a matéria, mostra-se adequada a atribuição de poderes investigatórios penais ao órgão ministerial. Não é, como pretendem alguns, o argumento histórico ou a tradição que determinam essa conclusão.

    Sob o aspecto jurídico, as interpretações sistemática, lógica e, até mesmo, gramatical do art. 129 da Constituição Federal não permitem extrair outra conclusão exceto aquela de que o Ministério Público não possui poderes para a investigação criminal.

    O texto é claro e expresso ao indicar, como função institucional ministerial, a promoção da ação penal pública, do inquérito civil e da ação civil pública. Quanto ao inquérito policial, limita-se a atribuir ao Ministério Público a requisição de sua instauração. Nesse particular, não tem lugar a regra de hermenêutica dos poderes implícitos. In claris non fit interpretatio.

    Além disso, a função de apurar as infrações penais foi expressamente atribuída no próprio texto constitucional às polícias civis e à polícia federal, no art. 144.

    É certo que a investigação não constitui monopólio da Polícia Judiciária, mas não é menos correto que o deslocamento dela para outros órgãos somente ocorre diante de expressa previsão constitucional e/ou legal, em hipóteses absolutamente excepcionais (v.g., as Comissões Parlamentares de Inquérito, a investigação, pela autoridade judiciária, de delitos praticados por membros da Magistratura).

    Examinando-se a Constituição Federal, verifica-se que a exclusão da investigação criminal das funções ministeriais foi deliberada e proposital: por meio dela, mantém-se o imprescindível equilíbrio com as demais instituições envolvidas na apuração das infrações penais: a Polícia Judiciária, o Poder Judiciário e a Advocacia.

    No sistema constitucional, incumbe à Polícia Judiciária investigar os delitos; ao Ministério Público promover a ação penal pública — requisitando para tanto da Polícia Judiciária sob o crivo do Poder Judiciário as diligências necessárias —, e à Advocacia zelar pela observância dos direitos fundamentais do investigado e pela legalidade do procedimento, socorrendo-se do Judiciário nessa tarefa.

    A atribuição de poderes investigatórios, na esfera penal, ao Ministério Público conduziria ao esvaziamento das funções da Polícia Judiciária e também ao seu desprestígio, inclusive político, com sérias consequências sociais na medida em que, diuturnamente, é para as Delegacias de Polícia que se dirige a população diante de uma ocorrência de natureza criminal. Poderá ela fazer o mesmo junto ao Ministério Público?

    Mesmo que se superasse a questão constitucional, admitindo que o órgão ministerial promovesse as investigações penais, teria ele condições técnicas de realizá-las? Suportaria toda a carga de inquéritos que são rotineiramente instaurados pela Polícia Judiciária, realizando as incontáveis diligências que são necessárias? Ou escolheria aquelas que pretende desenvolver, sobretudo as que são foco da imprensa, institucionalizando duas categorias de investigação: as de primeira e as de segunda classe, sendo que as últimas, por óbvio, seriam presididas pela Polícia Judiciária?

    Em acréscimo, seriam inegáveis os prejuízos para a investigação e para a atividade acusatória a ser desenvolvida no processo penal: de um lado, é uma utopia imaginar que o Ministério Público — titular da ação penal — não conduziria a investigação com nítido enfoque acusatório, em detrimento dela mesma, podendo produzir resultados viciados quanto à apuração da verdade; e, de outro, a presidência de investigações criminais pelo Ministério Público atingiria em cheio a imparcialidade da acusação a ser deduzida na ação penal.

    O argumento da ineficiência policial também não socorre a tese ministerial. É paradoxal que o Ministério Público detenha o controle externo da atividade policial, com autorização constitucional expressa, e mesmo assim pretenda atribuir, com exclusividade, à Polícia Judiciária a responsabilidade pelo fracasso do sistema investigatório em vigor.

    Além disso, a experiência tem demonstrado que o Ministério Público, quando investiga, age de forma totalitária e contrária às suas próprias funções institucionais: seleciona a dedo as investigações que pretende realizar; abandona por completo o regramento estabelecido no Código de Processo Penal; preside procedimentos que não são dotados de publicidade, nem da mínima transparência, uma vez que rotineiramente não são submetidos a regular distribuição no Poder Judiciário, sendo os advogados sistematicamente impedidos de examinar as peças que os integram, a pretexto de sigilo decretado ao arrepio da lei.

    Nesse quadro, além da patente inconstitucionalidade da atribuição de poderes investigatórios criminais ao Ministério Público, verifica-se que nem mesmo na prática ela se justifica, porque constitui verdadeiro desserviço ao Estado de Direito

  2. Álvaro Dino

    É clássica a passagem do livro ‘Martin Fierro’: ‘A lei é feita para todos/mas só ao pobre obriga./A lei é teia de aranha,/em minha ignorância tentarei explicar,/não a temam os ricos,/nem jamais os que mandam,/pois o bicho grande a destrói/e só aos pequeninos aprisiona./A lei é como a chuva,/nunca pode ser igual para todos./Quem a suporta se queixa,/ mas a explicação é simples;/a lei é como a faca que não fere a quem empunha.’ Não menos eloquente é o tradicional texto equatoriano: ‘Uma beleza o meu chefe;/parece-se com aquele cão,/que só morde o poncho,/mas a casaca jamais.’ Ou ainda: ‘Se na sentença dos juízes/percebes alguma justiça,/vê os pés do deliquente/e descobrirás quem usa botas’ (Juan León Mera, Cantares Del pueblo equatoriano).

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