16:28Chá com bolacha

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira

A traqueostomia da mãe não é das melhores. Às vezes, emperra. É um momento de tensão e agonia. Quando desci a desajeitada escada em caracol da nova casa, encontrei-a paralisada no sofá. O olhar pedia socorro, mas tentava transmitir tranquilidade. É difícil esconder o desespero. Ao seu redor, feito uma biruta desgovernada, meu sobrinho repetia “não quer sair, tio”. Ajoelhei-me no piso de lajotas. Com muito cuidado, girei a trava da traqueostomia para a direita e esquerda. Nas bordas da plaquinha de alumínio colada ao pescoço, algo gosmento — uma mistura de pus e catarro — se desprendia. Dói, mãe? Ela balança a cabeça. Diz que não. Tento outras vezes. É a primeira vez que vasculho a traqueostomia alheia. Sou um homem covarde. Sinto pena e asco. Dói, mãe? A cabeça deformada desloca-se para os lados. Meu sobrinho assiste mudo à sessão de tortura. Na tevê de imagem chuviscada,AnaMaria Braga discute a importância dos óculos escuros e como combiná-los adequadamente com a roupa. A Rede Globo é o consolo do pobre. Desisto de retirar a cânula metálica do pescoço da mãe. Ela agoniza, sufoca. Dói, mãe? Vamos ao Erasto Gaertner.

Na porta do hospital, o homem tem apenas uma narina. A outra é uma cratera, um rombo no meio do rosto. Ótima maneira de ser recebido num hospital para cancerosos. É a certeza de não ter errado o endereço. Deixo a mãe e seu neto mais velho na porta de entrada. E vou estacionar o carro à sombra de pomposos cedros. Do estacionamento à portaria, o passeio é agradável. Muitas árvores e um gramado bem cuidado transmitem uma paz inexistente. Na lateral à esquerda, uma capela para orações. Impressiona-me muito a ubiquidade divina.

De Campo Largo — a nova morada da mãe — a Curitiba são vinte e cinco quilômetros. Até o Erasto Gaertner, outros dez. O trajeto é seguro; a paisagem, bonita. A rodovia duplicada facilita as coisas. Estradas com pedágio são ótimas para transportar mulheres com câncer. Na chegada a Curitiba, o Parque Barigüi — local preferido dos curitibanos para colocar a saúde em dia em caminhadas e corridas. Fizemos toda a viagem em absoluto silêncio. Ou quase. A mãe respira com muita dificuldade e emite um ruído pesado, abafado — uma fábrica falida; um elefante esquelético agonizando. Pensei em colocar uma música qualquer para competir com o ronco da traqueostomia entupida. Mas não há canção capaz de derrotar o silêncio ruidoso da morte.

A mãe está na emergência à espera de socorro. Sei que vai demorar. Sempre demora. Além do homem sem nariz, largado na cadeira de rodas, outras cento e treze pessoas se amontoam na sala quase insuficiente para abrigar tanta gente. São doentes e familiares. Alguns familiares são solidários no câncer. Muitos estão mutilados. Faltam dedos, seios, pedaços do pescoço, do rosto. O câncer tem péssimo gosto estético. São pessoas com defeito de fabricação. Ao fundo, um homem retira os óculos escuros para acariciar o rosto. Falta-lhe o olho direito. Coça o olho que lhe resta e recoloca os óculos. A roupa não combina com os óculos de sol. Acho que ele não assiste ao programa da AnaMaria Braga. Deveria.

Vários pescoços carregam traqueostomia. Descubro que todos têm o mesmo sotaque — o de um gato cansado e fanho. Quando o aparelhinho entope, o gato entra em desespero. Uma placa na parede é quase maldosa: “Sorria, você está sendo filmado”. Eu sorrio. O homem sem nariz não sorri. A mulher sem orelha não sorri. O menino ao lado da mãe, cuja urina está numa bolsa plástica conectada à barriga, não sorri. A velha com um lenço para esconder a cabeça sem nenhum fio de cabelo não sorri. Acho que não sabem ler. Ou não têm senso de humor.

Deixo a sala e ganho o pátio ensolarado. Nas lixeiras, moscas e abelhas disputam as beiradas das latas de refrigerante. Não há lógica nos tonéis de separação de lixo reciclável: restos de comida, papel, plástico e lata estão todos misturados. Pessoas com câncer não se preocupam muito com o meio ambiente. Alguns doentes caminham sem rumo. Estão à espera de um chamado que nunca vem. As horas se arrastam no Erasto Gaertner. O tempo passa mais devagar para quem tem câncer. Pelo menos para aqueles que esperam atendimento.

Encosto-me no gradil. Lá embaixo, avisto a ala para atendimento a convênios e particulares. Imaginava que o Erasto atendesse apenas a pacientes do SUS. Sou muito mal informado. Ali, poucas pessoas aguardam numa sala arejada e bem organizada. Não há confusão. Todos estão bem acomodados, apesar de que a fisionomia dos doentes também não seja das melhores. O câncer come o pobre e o rico com o mesmo apetite. A rampa de acesso é melhor que a de cima. As pessoas estão bem vestidas. Chegam amparadas em cadeiras de rodas em perfeito estado. Os carros estacionados valem muito dinheiro. O câncer também tem classe social. O Erasto Gaertner foi construído por um atrapalhado engenheiro divino: o inferno fica em cima; o purgatório, embaixo. O céu ninguém sabe muito bem onde se localiza.

De volta à sala atulhada de mutilados, noto que muitos seguram copos e pacotinhos plásticos. Funcionários passam e oferecem chá e bolacha. Chá do quê?, pergunto. Não sei dizer, responde a atarefada atendente, sem me dar muita atenção. Minha aparência saudável, ali, é uma espécie de insulto. Decido não aceitar chá e bolacha. Não tenho fome, apesar de estar há quase quatro horas em pé à espera que desentupam o pescoço da mãe. Noto que as bolachas estão todas quebradas. Talvez restos de uma fábrica bondosa. O chá, pelo menos, está quente. A fumaça no copinho plástico é um alento.

Cansado de esperar, resolvo bater na porta do Pronto Atendimento. É só mais uma ironia do mundo: um pronto atendimento cuja espera chega a quatro horas. A mãe é um amontoado de ossos num banco. Está mais difícil para respirar? Ela balança a cabeça. Leio o nome da médica no jaleco: Emanuele. É loira e jovem. Explico que a mãe precisa de atendimento urgente. Já é quase meio-dia. Sem perder o sorriso, a jovem médica garante que ela será a próxima. Não mente. A mãe é chamada e some por uma porta. Menos de cinco minutos depois, retorna. A nova engrenagem no pescoço brilha. O gato cansado está mais feliz. Transformou-se num passarinho desafinado. Está assobiando, a mãe diz com dificuldade. Melhor assim, mãe. Mas, ao fim, o gato sempre come o passarinho. Ganhamos o hall de entrada. A distribuição de chá e bolacha continua. O homem sem nariz segue aguardando. Colocamos a mãe no carro. O estacionamento embaixo dos cedros custa dez reais.

A mãe precisa almoçar leite pela sonda. Chá e bolacha quebrada não passam pela cânula gotejante. O trajeto até Campo Largo é sempre agradável e seguro. Voltamos para casa.

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)

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