8:42O valerioduto e os lombrosianos

por Ivan Schmidt

A blindagem de Lula, para usar um termo corrente nos meios de segurança pública, privada e até pessoal, está começando a oxidar aqui e ali. O procurador geral da República, Roberto Gurgel, que denunciou perante o Supremo Tribunal Federal (STF) os acusados de terem participado do mensalão, inclusive defendendo a tese de que os condenados deveriam ser presos imediatamente, declarou que deverá pedir a abertura de investigações sobre o envolvimento de Lula no referido escândalo.

Gurgel vai remeter o pedido à primeira instância, justificando que o ex-presidente já não goza das prerrogativas do cargo, sendo apenas cidadão comum, preservados obviamente seus direitos de plena e absoluta defesa perante os tribunais. De saída lanço aqui um desafio: quem é capaz de adivinhar qual será o advogado escolhido por Lula – isto se Gurgel levar a efeito a intenção – para exercer sua defesa? O ex-ministro da Justiça do próprio Lula, Marcio Thomaz Bastos é pule de dez, mas tudo deverá ficar, por enquanto, no campo da especulação.

A declaração feita pelo procurador Roberto Gurgel tem lastro no depoimento prestado a representantes do Ministério Público Federal pelo publicitário Marcos Valério, ressalvada a tentativa desesperada de amenizar a pena, informando ter depositado dinheiro numa conta da empresa de Freud Godoy, um dos assessores próximos de Lula (na reserva dos aloprados), destinado a cobrir despesas pessoais do ex-presidente. O depósito foi comprovado com a quebra autorizada do sigilo bancário da empresa Caso, que teria prestado serviços de segurança nas campanhas de Lula à presidência, além de servir também a outros candidatos do PT.

A alegação de Godoy é que o dinheiro recebido se destinou ao acerto de pendências financeiras que o PT mantinha com a empresa, os tais débitos de campanhas eleitorais. E mais uma vez o valerioduto foi acionado com sucesso.

Não fosse pura maldade, seria apropriado dizer que em alguns círculos petistas viúvas de Lula não fazem outra coisa senão rezar para que o caso, com perdão do trocadilho, não venha se constituir num caso verídico e consumado e, pior para o ex-presidente, num caso perdido.

Aos poucos vão ficando claras as razões plausíveis que teriam levado muitos petistas históricos a saltar do barco capitaneado por Lula, ao que se sabe hoje um comandante que não gosta de ser contrariado e somente tolera a presença dos companheiros que dizem amém àquilo que ele próprio acha que é verdade, mesmo com o risco de cometer erros abomináveis. Por que tantos intelectuais e políticos que vestiram a camisa petista desde os tempos de gestação do partido, quando sofreram o desprezo dos colegas de academia e ambiente partidário, chegaram à conclusão que melhor era se afastar?

Talvez ajude algum leitor porventura desavisado lembrar um episódio antigo na carreira política de Lula, narrado por um de seus colaboradores mais fieis, o sociólogo Cesar Benjamin, que aos 14 anos de idade já estava integrado ao grupo dos que lutavam contra a ditadura. Na campanha de Lula à presidência da República em 1994, o então militante petista era um dos coordenadores do programa de governo. Na reta final houve o famoso debate entre Luiz Inácio e Fernando Collor na Globo, vilmente manipulado no dia seguinte na edição do Jornal Nacional.

Cesar Benjamin relatou na entrevista dada a Zuenir Ventura para o livro 1968 o que fizemos de nós (Planeta, SP, 2008), que a edição do debate foi numa sexta à noite e no domingo a eleição: “Collor venceu por pequena margem e a edição do debate foi decisiva para esse resultado”, admitiu. Poucos dias depois, o sociólogo viajou a São Paulo e lá se encontrou com Lula e este lhe informou que havia estado com a direção da Globo: “Jantei com eles ontem. Derrubamos três litros de uísque”. Cesar então lembrou que entre a edição do debate e a eleição, a direção do PT no Rio arregimentara oito mil pessoas para um protesto na frente da Globo. “Enquanto isto, nossa maior liderança jantava e bebia com a direção da emissora”.

Foi neste momento, segundo a narrativa de Cesar Benjamin, que ele percebeu que a luz amarela acendeu: “O Brizola estava se expondo publicamente, contestando a Globo e defendendo o Lula enquanto o Lula jantava com a direção da Globo, escondido. Hoje compreendo que, naquele momento, o Brizola começou a ser destruído definitivamente, e o Lula, demonstrando uma espinha muito flexível, começou a desbloquear sua carreira política. Eu não exigiria que hostilizasse a Globo, poderia fazer qualquer coisa, mas não derrubar três litros de uísque com eles naqueles dias. Isto me pareceu falta de dignidade pessoal”.

Há um trecho da entrevista do sociólogo que vale a pena ser citado, tendo em vista sua veraz ligação com os rumos seguidos pelo PT desde então: “Lula e Zé Dirceu foram dissolvendo o PT em um banho de dinheiro, cooptando todos os que podiam cooptar. Patrocinaram uma seleção negativa, que favorecia os piores”. O vaticínio é aterrador: “Quando comecei a ver gente lombrosiana ganhando cada vez mais importância, procurei o Lula, e ele disse para eu não me meter. Foi quando decidi debater na direção nacional o que estava acontecendo: era muito grave! Mas, naquele momento, ninguém mais se propunha a enfrentar o Lula e o Zé Dirceu”.

A última tentativa de Cesar Benjamin, depois de 16 anos de militância no PT, foi levar o assunto para o Encontro Nacional que teria lugar em Vitória. Inscrito para falar, viu da tribuna que Zé Dirceu, de frente para o plenário fazia sinais para a turma de Santo André e seu pronunciamento foi violentamente interrompido, incluindo ameaças de espancamento. “Aquele foi meu último momento no PT”, revelou.

A hora de confronto com uma verdade que pode ser extremamente amarga para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como já está sendo para Zé Dirceu, a quem entregou a braçadeira de capitão do time (o primeiro-ministro mesmo que o sistema não fosse parlamentarista), vai escancarar outra constatação judiciosa de Cesar Benjamin sobre o próprio Partido dos Trabalhadores que nasceu, segundo ele, querendo reinventar a história, dizendo que ela começa com ele: “O que acontecera para trás não tinha valor. Renegou a mais brilhante geração de intelectuais brasileiros e não compreendeu o movimento endógeno do Brasil. Tudo era impuro e ele era puro. Como não foi capaz de construir uma doutrina de bases sólidas, acabou sendo facilmente cooptado pelo que há de pior. Não se constituiu nem mesmo como um partido reformista sério, o que já estaria de bom tamanho. Num partido arrogante e frágil, sem história, Lula e Zé Dirceu encontraram um campo fértil para implantar a estratégia desagregadora que conceberam”.

Como uma doença séria diagnosticada no organismo humano tem sua gênese propriamente dita alguns anos antes, não faltaram vozes lúcidas e compenetradas da missão de advertir os eventuais detentores do poder de que o barco começava a fazer água.

Um destes bravos foi o jornalista Daniel Piza, morto no ápice de sua produção intelectual e um dos críticos que mais falta está fazendo no presente contexto. Na coluna Sinopse do Estadão de 3/7/2005, no início do primeiro mandato de Lula como presidente da República, escrevia que a máquina pública é uma “caverna de delúbios, um labirinto de waldomiros”, clamando por “um choque de gestão e moralização, o que o atual governo já não tem credibilidade para fazer e, mais ainda, um debate cultural, pois a exaltação tupi do jeitinho, do conformismo e da patotagem é o meio onde se multiplicam os roedores de dinheiro coletivo”.

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7 ideias sobre “O valerioduto e os lombrosianos

  1. Parreiras Rodrigues

    Ivan (olha a intimidade…) me dá razão quando digo que não existe mais petismo. Foi substituido pelo lulismo.

  2. O ESTÚPIDO

    porra – as fontes são o Marcos Valério – o original, que, com os tucanos, criou o esquema e depois repassou aos petistas – a operação de caixa 2, que ganhou nome de mensalão – pois o que o PSDB faz irregularidade e o que o PT faz é crime e por ai vai…

    Já o Cesar Benjamin, conheço o lunático, mal amado e esse sim, de bater pino, bebe 3 litros de uísque – é o cara “estuprado” pelo Lula e etc … se todos aqueles que se dizem ter sido torturados e os que realmente foram – tivessem 1% da paranóia do Benjamin – bem – a Dilma era dona de circo e não presidente.

    Daniel Piza – outro da linha “classe média desaturdida” – pseudo intelectual – resenhador de orelha de livro – também um “canado” – um elitista do time de azeredo, noblat, nunes, mainardi e etc ..a

    então, meu caro …

    essa esperneação não tem base qualquer na realidade – só nas idiosincrasias e ódio de classe, no preconceito, no valor alienado e na ideia de que uns são melhores que outros – e que Lula – por representar outros valores – deve ser demonizado…

    bem que ranjam os dentes

    rs…

  3. Palhares

    “A primeira arte que devem aprender os que aspiram ao poder é de ser capazes de suportar o ódio.”
    ―Sêneca

  4. jose

    Leitor, aplaudir seu comentário é pouco, permita-me complementar: quem fala em ódio de classes e fomenta isto é exatamente o pessoal do lula de do zedirceu…coisa da modernissima revolução bokchevique, ou a “vanguarda do atraso”…coisa de petistas…

    e por falar em “outros valores”, no caso lula, é o Adhemar de Barros com a tez do maluff, mas pode chamar de lula da silva mesmo…

  5. Célio Heitor Guimarães

    Curioso, Cezinha Benjamin só passou a ser um “lunático” quando descobriu no que resultou o PT dos sonhos dele…
    Parabéns pelo texto, Ivan. Brilhante, como sempre.

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