19:27Feliz 1982

Ilustração deTheo Szczepanski

por Rogério Pereira

Comprei uma mesa — uma mesa e seis cadeiras. É a primeira vez que compro uma mesa. Paguei em seis parcelas. Uma parcela para cada cadeira. A Riachuelo tem móveis, roupas e putas. Quando embiquei pela estreita rua, vindo da praça Generoso Marques, três prostitutas e um rufião (imagino que fosse) conversavam com certo desânimo na esquina envoltos pelo ridículo calor de Curitiba. As três vestiam saia curta e blusas decotadas. Nos pés, sandálias plásticas. Os peitos flácidos esmagados contra o coração e os ossos da costela. Todas de seios enormes, meio caídos — anjos de asa quebrada. Sem silicone. Antiquadas, as putas da rua Riachuelo não usam silicone. São do tempo em que se conquistava cliente a muque, no suor da língua.

Havia tempos não encontrava as putas da Riachuelo. Sempre que as vejo, lembro-me da minha mãe. Não, ela não é puta. Pelo menos que eu saiba. Hoje, seria impossível. O câncer transformou seus seios em duas vergamotas murchas. A bunda desapareceu, ganhou o contorno de uma reta. O câncer na garganta da mãe suga todo o resto do corpo para um lugar desconhecido. Onde o câncer cospe os pedaços que mastiga do corpo da mãe?

Mas as putas da Riachuelo lembram minha mãe. Quando criança, ela me arrastava pela rua em busca de roupas baratas e resistentes. Pobre não liga pra roupa bonita. Pobre gosta é de durabilidade. Os turcos — todos libaneses — seguem ali com suas lojinhas, sentados à espera de uma clientela que não os abandona. As putas também. Eu tinha nove anos. Era 1982. Tenho certeza. Tudo em minha vida aconteceu (e continua acontecendo) em 1982 — o ano em que Paolo Rossi destruiu a minha vida e a do Telê Santana, na Espanha. 1982 é a minha Caverna do Dragão. Queria ser o Mestre dos Magos. Sempre fui o unicórnio Uni, cujos balidos poucos compreendem. A mãe me levava em direção a uma das lojinhas. A puta recostada na laje chapiscada notou meus olhos ensandecidos em sua direção. Os peitos eram gigantescas bolas de fogo. Ao cruzá-la, a surpresa: despejou um dos seios para fora da blusa. A bolota branca reluziu e espalhou-se em mim. Estaquei tal um burro teimoso. Não mexia as pernas. O corpo teso à espera de algo que jamais aconteceria. A puta sorria. A mãe soltou a língua entre os dentes, inflou as bochechas: sua puta. Não lembro se a mãe já usava dentadura em 1982. Acho que não. Talvez tivesse apenas alguns dentes presos à gengiva. A palavra puta percorreu os becos da Riachuelo. A puta peituda gostou. Sorriu feito uma puta feliz. E deixou o peito balangando ao alcance da minha mão. Meus dedos nunca o alcançaram.

A fachada não inspira qualquer confiança. Amontoados, os móveis dificultam a passagem. Está tudo entulhado, sem qualquer lógica aparente. Percorro corredores estreitos. Plaquinhas de papel avisam que os móveis são de ponta de estoque — passíveis de pequenos defeitos na pintura ou nas peças. Não me importo. Gosto da confusão e dos móveis. Apenas uma vendedora corre para todos os lados. Os clientes surgem por trás de cristaleiras, guarda-roupas, cômodas. No segundo piso, estão as mesas. É fácil me decidir: a mesa de madeira crua com seis cadeiras cabe exatamente no meu sufocante orçamento. Vou levar esta. Negócio fechado. Volto à Riachuelo. O calor segue destruindo a fama da Curitiba fria e cinza. Coisa do passado. Talvez de 1982. Tenho pensado muito no ano-novo. Já que os maias erraram feio sobre o fim do mundo, é preciso esboçar projetos para 2013. Aproveito o trajeto entre as putas e a Biblioteca para organizar as coisas na minha confusa cabeça. O ano acaba. A cidade se esvazia. As putas têm mais dificuldades de encontrar clientes. Os taxistas reclamam do pouco serviço. Os motoristas se divertem com o trânsito sem congestionamentos. Curitiba é uma cidade melhor quando os curitibanos decidem deixá-la um pouco em paz.

Diante do Paço da Liberdade — o prédio histórico que já abrigou de tudo: prefeitos, museu, desocupados e, agora, um centro cultural —, decido desviar o trajeto. Entro na pastelaria Generoso. O chinês atrás do balcão não me reconhece. Trinta anos é muito tempo para um ser humano que vende pastéis. Digo-lhe antes de qualquer cumprimento: “Em 1982, meu pai levava os restos dos pastéis para casa. Aqueles que você não conseguia vender. Eu comia os pastéis molengas e gordurosos antes de ir pra escola. Tinham gosto de lesma”. O chinês não se mexe, não esboça movimento. Não entende absolutamente nada do que digo. Não faz ideia de que meu pai vendia flores à noite na praça. E, pela manhã, ganhava pastéis amanhecidos na bandeja de alumínio. Levava-os para os filhos. O chinês aponta o fundo da pastelaria. O banheiro é ali. Deixo-me cair sobre a banqueta e peço um pastel de carne. Vou ao banheiro. Na volta, encontro o pastel gorduroso num prato amarelo de plástico. Pago a conta e deixo o pastel intacto sobre o balcão. Uma lesma inerte, morta desde 1982. Saio e tomo novamente a direção da Biblioteca.

Cruzo a praça Tiradentes. A catedral foi pintada. Está feia. Parece uma velha com maquiagem de adolescente. Entro na biblioteca, cumprimento alguns funcionários e sigo para a minha sala. Sobre a mesa, a folha de rascunho. Enumero possíveis planos para 2013. Tenho obsessão por listas. Sublinho o último e mais importante projeto: resolver algumas questões pendentes em 1982. O telefone celular me assusta. É uma ligação da loja de móveis. A mesa será entregue amanhã à tarde. O calor amolece meu ânimo. Encosto a cabeça no tampo de vidro da mesa. Adormeço por alguns minutos.

E quando despertou, o ano de 1982 ainda estava lá.

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5 ideias sobre “Feliz 1982

  1. Itaguaíba

    Vindo de Rolândia (eta nome…), meu primeiro enderêço em Curitiba foi na Riachuelo nº 246….em fevereiro de 1970. Faz tempo…

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