11:30Cangote ou A cumplicidade dos assassinos

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

1.
Estamos num jipe velho. Os tubarões ficaram para trás. Matamos alguns. Não muitos. O motorista avança pela floresta. As ruínas surgem entre as árvores. Carregamos duas metralhadoras potentes, que despejam rajadas para todos os lados. Atentos, avançamos em direção ao desconhecido. Havia muito tempo não me embrenhava por uma mata tão espessa. Na infância, facão em punho, construía mirabolantes cabanas ao lado do primo com vocação para engenheiro. Pena que ele não exercitou suas habilidades construtoras. Neste ano, acabou morto pela polícia com cinco tiros de escopeta. Ou seria revólver? Quando a primeira leva de aranhas assassinas surge de trás de árvores e monumentos abandonados, assusto-me e disparo feito um estabanado Cantinflas. Minha mira não é das melhores. Diria alguém que sou um camaleão daltônico. Ele me olha e grita: Vamos matar todas. Somos dois homens disfarçados de esquálidos Rambos em alguma floresta da América Latina. O GPS do jipe está quebrado. Já conseguimos dominar a horda de aracnídeos. Avançamos com dificuldade. De repente, surgem dezenas de novas aranhas gigantes e nojentas. O pesadelo está apenas começando. Mas nós nos olhamos e sorrimos. E continuamos a atirar com fúria e nenhuma técnica.

2.
A curva é muito acentuada para a direita. Não vamos conseguir. Não conseguimos. O carro desliza e se arrebenta na murada do autódromo. O público levanta-se em êxtase. Muitos carros nos ultrapassam. Tirei a carteira de motorista com quase trinta anos. Nunca gostei de carros. Agora é diferente. Estou numa espécie de competição, cujas regras desconheço completamente. Algo estranho, maluco, quase incompreensível. Ele está no meu colo. Não há leis de trânsito. Precisamos acelerar e ultrapassar o máximo possível de carros. Ele não alcança os pedais do acelerador e do freio. Somos uma dupla: eu acelero, ele dirige. Se nos visse, Dick Vigarista estaria rolando de rir de nossa estapafúrdia coordenação motora. O carro ricocheteia pela pista, derrapa e, invariavelmente, choca-se contra o muro. Somos ultrapassados o tempo todo. Esqueço-me dos freios. Apenas acelero e lhe digo para prestar mais atenção. A pista está tomada por outros malucos desgovernados. Ele gira o volante sem qualquer rigor. E sorri feito um menino de três anos. Preste atenção. Vamos bater. Ele se concentra. Eu acelero. Nos aproximamos da linha de chegada. Agora, estamos em Detroit. Nunca fui pros Estados Unidos. Nem pra Disney. Cruzamos a linha de chegada. O público nos aplaude enraivecido. A gente ganhou? — ele pergunta. Sim, ganhamos — minto. Ele ainda não sabe muito bem a diferença entre primeiro e último. Chegamos em último. Um alegre fiasco.

3.
O piloto nos passa todas as orientações de como atacar o inimigo. A aeronave é moderna e levanta voo de um porta-aviões. Estamos no meio do oceano. Atlântico, talvez. Não escolhemos esta guerra. Ela nos foi imposta como todas as guerras. Não entendo as instruções. O piloto só fala inglês. Eu só sei português. Conversa de mudo com cego. Descubro como é difícil sobreviver sem saber inglês. Maldita ignorância. Ao meu lado, ele me olha atento. O que fazemos? Ele não sabe que não sei inglês. Ele não sabe muitas coisas a meu respeito. Aos poucos, vai descobrindo. Espero que a decepção não seja muito grande. O que fazemos? É preciso comandar o avião em direção aos inimigos. Parece simples. Temos o manche e alguns botões diante de nós. Sem compreender nenhuma instrução, preparo a decolagem. Em nenhum momento, o instrutor disse “the books on the table”. Teria entendido. Acho. O avião decola. Eu piloto. Ele atira. Não sei o que fazer, nem para onde ir. Ele atira num inimigo inexistente. O que fazemos agora? Não sei. Ele desiste de atirar. Está chateado. Eu desisto de pilotar. Vamos matar tubarões.

4.
Tubarões são perigosos. É preciso matá-los. Eles surgem a nossa frente. Ele atira. São bolinhas de pingue pongue. Ele não sabe o que é pingue pongue. Atira com ferocidade contra tubarões até simpáticos e sorridentes. Talvez sejam carcarinídeos. E são cravejados de bolinhas. Eu apenas o observo. São alvos bem fáceis. Deixa o dedo preso no gatilho. Aos poucos, alguns tombam. Ele descobre que adora matar tubarões. Eu descubro que adoro vê-lo matar tubarões. A cumplicidade de dois assassinos. Lembro-me do filme, do pavor dos banhistas, da bocarra faminta a devorar pernas, braços, corpos inteiros. A praia em pandemônio. Tubarões exterminados, vamos às tartarugas. Com uma marreta de borracha, esmagamos as cabeças dos quelônios intrometidos. É bem fácil: cabeça pra fora do casco, porrada. O barulho é desagradável. Tartarugas são ainda mais fáceis de matar que tubarões. Uma marreta é sempre mais eficiente que bolinhas de pingue pongue.

5.
Matamos aranhas gigantes, tubarões assassinos e indefesas tartarugas. Destruímos um carro de corrida. E abandonamos um avião em pleno voo. Fizemos coisas que eu considerava impossíveis. Não havia pião, bolinha de gude, pipa, tampinha de garrafa, bola de meia. Parece que o mundo mudou um bocado nos últimos trinta anos. Nem notei. Sou um pouco desatento, além de daltônico. Saímos da casa de jogos eletrônicos. Vamos tomar sorvete. Ele se agarra às minhas pernas. Cangote, papai. Levanto-o e o jogo sobre os ombros. Ele faz bagunça no meu cabelo, afaga minhas orelhas. Eu o seguro pelas canelas finas. Já não tenho somente um metro e oitenta e quatro. Tenho quarenta anos. Ele, três. Somos dois homens magros que se amam. Vamos encher potes gigantescos de sorvete com frutas. Ele está feliz porque o carrego no cangote. Ele vai crescer e carregar alguém no cangote. É bom carregar um homem de três anos, magro e parecido comigo. E dá sentido a algo cujas regras e objetivos desconhecemos.

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