7:37Lemas e gestos sinistros

por Ivan Schmidt

“Voltarei e serei milhões” teria dito Evita Perón, no auge de sua mesmérica influência sobre as massas, no período em que ao lado do presidente Juan Domingo Perón, ajudou a construir ou construiu com sua força dominante sobre o emocional das pessoas, um estado de fantasia e ilusão, para dizer o mínimo.

Para a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, hábil intérprete da idiossincrasia de seu povo, até pouco tempo campeão absoluto de freqüência a consultórios de analistas, no livro Tempo presente (José Olympio, RJ, 2005), “a frase é poética por sua síntese e seu ritmo (um octassílabo, o verso mais fácil da língua espanhola); ela transmite uma promessa simbólica e desafia a morte. Tal como os braços erguidos de Perón quando saudava o povo reunido na praça ou as mãos entrelaçadas de Alfonsin, os lemas e gestos políticos condensam significados. A política vive desses emblemas de reconhecimento. São ideogramas: ideias que se tornam materiais, visíveis”.

Diz ela, ainda, que muitos dos lemas políticos ficam na memória, mas nem sempre por causa de suas qualidades estéticas ou ideológicas e, sim, “por sua hipocrisia e cinismo”. Lembremos aqui alguns lemas usados por políticos brasileiros em tempos recentes: “O pai dos pobres” (Getúlio Vargas), “50 anos em cinco” (Juscelino Kubitchek), “Varre, varre, vassourinha” (Jânio Quadros), “Para frente e para o alto” (Adhemar de Barros), “O Brasil é feito por nós” (José Sarney), “O caçador de marajás” (Fernando Collor), “A esperança venceu o medo” e “Deixa o homem trabalhar” (Lula), “O capitão do time” (José Dirceu) e “A mãe do PAC” (Dilma Rousseff).

Não resisto à suspicácia de lembrar os lemas de Paulo Maluf (“Maluf faz”), Tiririca (“Pior do que está não fica”) e o nosso prosaico (“Pocotó, pocotó!) do impagável professor Galdino. Mas deixo aos leitores a inglória tarefa de descobrir dentre eles, qual é o menos (ou mais) cínico e hipócrita.

Um achado como “Voltarei e serei milhões”, segundo Beatriz faria a fortuna de qualquer redator profissional de discursos, embora ela mesma tenha conjeturado que a frase não foi inventada por nenhum marqueteiro. E lembra: “As frases que os políticos pronunciam hoje parecem descartáveis; são testadas, são medidas pelas pesquisas, são preservadas quando fazem sucesso ou arquivadas, e vai se pensar em outras”.

O detalhe que chama a atenção é que o livro de Beatriz Sarlo foi publicado em 2004 (um ano depois no Brasil) e cerca de duas décadas após pouquíssima coisa mudou no picadeiro em que evoluem piratas, odaliscas, pierrôs e arlequins travestidos de políticos. E a ensaísta parecia ver aquele quadro com autorizada antecipação: “Quando os políticos são transformados em meros repetidores de palavras de ordem que são atiradas como uma rede para capturar cidadãos arredios e desiludidos, é porque alguma coisa está errada”.

Voltando ao ambiente político vivido hoje no país vizinho, com o choque frontal entre a presidente Cristina Kirchner e o maior conglomerado de comunicação (o Grupo Clarín), sobrando inclusive farpas presidenciais para a Corte Suprema de Justiça (o STF na configuração do Judiciário argentino), por indiferença dos magistrados em relação ao real interesse da população. Explique-se que na visão de Cristina, o interesse da população estaria contemplado se a Corte houvesse confirmado o chamado 7D e, no dia 7 de dezembro (sexta-feira passada) o Grupo Clarín dobrasse a espinha ante à determinação imposta pelo governo, estipulado o citado prazo, transferindo para outros donos alguns de seus canais de televisão por assinatura e emissoras de rádio, numa espécie de leilão compulsório.

A Corte rejeitou o pedido da presidente e esta fez uma convocação pública para o domingo seguinte na Praça de Maio, e lá estiveram 100 mil pessoas, para comemorar o Dia da Democracia. No mesmo dia, Cristina requereu a formação de rede nacional de televisão para um pronunciamento sobre o rumoroso tema, mas como 80% das famílias argentinas têm TV por assinatura, o programa mais visto no horário da fala presidencial foi o filme ToyStory3, exibido pelo Disney Channel.

Cristina Kirchner é a herdeira dos escombros do peronismo, mito político que encarnou na nacionalidade argentina desde os anos 40 do século passado, e apesar de sua estranha capacidade de canibalizar-se ou despedaçar-se em grupos heterogêneos, ainda persiste com a força de sempre. Seguindo o pensamento de celebrados intelectuais argentinos como Ezequiel Martínez Estrada e Ernesto Sabato, Beatriz levantou a seguinte questão: “Como um líder com um perfil tão autoritário e um movimento de massas dirigido verticalmente, com todas as contrassenhas de um carnaval político, pôde arrebatar seguidores de uma lealdade absolutamente inquebrantável?”.

Após a queda de Perón em 1955, foram os intelectuais os primeiros a tentar explicar a nova cultura política introduzida na Argentina, registrando-se até o final da década de 60 a publicação de uma farta messe de estudos sobre o enigma peronista. Escritores importantes como Rodolfo Walsh, Beatriz Guido e Leopoldo Marechal – entre outros – tiveram no peronismo um fértil terreno para a expansão do imaginário, sendo que os oponentes “não puderam entender a originalidade do movimento peronista, e o compararam ao fascismo e ao autoritarismo”, segundo Sarlo.

A ensaísta conclui, entretanto, que a identidade peronista não ficou inerte após a queda do regime. “Ao contrário, ela é reforçada principalmente pela crença de que a dívida só poderia ser saldada depois da volta do líder e seu movimento em direção ao poder”, escreveu para enfatizar a percepção ainda hoje observada de que “o peronismo alimenta uma cultura de não-rendição, apoiada nas memórias de uma época de ouro que, se fosse restaurada, representaria a liquidação da dívida e a reimplantação da justiça”.

E Perón voltou ao poder pela vontade da maioria dos eleitores argentinos. Contudo, esse período terminou com o golpe de Estado de 1976. Leiamos Beatriz: “A maior ferida imposta à sociedade argentina moderna, uma ferida produzida para golpear, definitivamente, todos os temas ideológicos que estiveram presentes ao longo do século. E para eliminar, também para sempre, aqueles atores que eram considerados os portadores dessas culturas em conflito”. Provavelmente nenhum outro intelectual daquele país tenha concebido um epitáfio tão apropriado: “O sinistro deixou sua marca na experiência argentina”.

Todavia, é insofismável a dificuldade que, especialmente, os políticos que deveriam dedicar-se a trabalhar pela felicidade e bem-estar dos habitantes da polis, têm para intuir quais são suas verdadeiras responsabilidades.

O estágio político argentino é preocupante. O Foro Iberoamérica, criado em 1999 pelo escritor mexicano Carlos Fuentes (já falecido), formado por empresários, intelectuais e jornalistas, expressou na semana passada a preocupação com o cerco que o governo exerce sobre a mídia independente do país, mudando marcos regulatórios, instaurando processos judiciais e ações administrativas. O atual presidente da instituição, o ex-presidente chileno Ricardo Lagos, definiu o comportamento do governo argentino como “sistemático plano de perseguição”.

O jornalista Mario Antonio Santucho publicou em recente edição da revista portenha Crisis artigo sobre a guerra particular entre a presidente Cristina Kirchner e o Grupo Clarín, transcrito pelo blog Carta Maior. Aponta ele que diante do desafio, a liderança maior do kirchnerismo dobrou a aposta e aproveitou para polarizar a cena segundo seu gosto e estilo. “Confiando ter a razão histórica a seu lado, dinamitou todo o cenário de negociação mais ou menos espúrio, e chamou para si (mais uma vez também foi na direção contrária) a tarefa de subordinar seu inimigo circunstancial. Ao reagir desse modo deixou em segundo plano o pulso e o sentido da conflitividade que protagonizava, desviando assim a condução do processo”, escreveu.

O imbróglio teve início em 2008 quando o governo decidiu cravar um imposto extra (lá também é assim) sobre a exportação de commodities, e o setor rural que é mais forte que qualquer outro na economia argentina, se rebelou. O Grupo Clarín assumiu a causa ruralista e, por esse pecado mortal capitulado no catecismo dos graduados conselheiros da Casa Rosada, as retaliações não se fizeram esperar. Santucho disse, ainda, que o mais interessante seria “entender a natureza dos antagonismos sociais e políticos que vivemos, e a maneira pela qual as instituições se movimentam segundo interesses pouco democráticos, ou se acomodam a hegemonias voláteis”.

Percebe-se com clareza uma alusão, mesmo velada, à força ainda dominadora do credo peronista sobre a nova (?) cultura política do país que legou ao mundo Martin Fierro, Segundo Sombra, Carlos Gardel, Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Daniel Barenboim, Mafalda e Lionel Messi.

E a conclusão é não menos brilhante: “À espera da próxima decisão da Corte e da evolução dessa novela que nos mantém em suspense, conviria retomar os pontos fundantes daqueles debates que contém ao menos a promessa de uma democratização, hoje escondidos pela luta cega entre os dois grandões do bairro”.

Lá como cá, percebe-se facilmente, haverá ainda muita luta entre os grandões.

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2 ideias sobre “Lemas e gestos sinistros

  1. Junior

    Chamar uma pessoa de cínica e hipócrita sem conhecer é triste. Acredito que essas críticas deveriam ser melhores estudadas, pois Professor Galdino, Tiririca são pessoas simples e humildes não tem berço político para se comparar com a corja de ladrões, tenho certeza que ambos são honestos devido a sua criação. Respeitam o povo e não tem medo de estar em contato com eles. O autor do texto precisa ser mais humano e menos crítico, pois muitas vezes o ridículo, o diferente não significa que seja desonesto e ladrão.

  2. Ivan Schmidt

    Prezado Junior, a intenção única do texto foi chamar a atenção dos leitores para os lemas utilizados por políticos brasileiros, nas últimas décadas. Não houve a menor intenção de acusar nenhum dos citados de desvios morais e éticos…
    Mas, apenas, ilustrar o pensamento de Beatriz Sarlo sobre lemas subliminares que os políticos usam para angariar votos. Inclusive deixei a tarefa de avaliar se os tais lemas são mais ou menos hipócritas, ao próprio eleitor. Concordo com você sobre a honestidade de Tiririca e Galdino e, reitero que foram citados apenas à guisa de exemplo das práticas bizarras de alguns políticos.

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