Ilustração de Theo Szczepanski
por Rogério Pereira
Ir ao banco é algo banal. Chato, mas banal. Quando se tem de acompanhar uma mãe com câncer é uma inusitada aventura. Na porta antifurto, o primeiro inconveniente. E se o metal da traqueostomia trancafiar a mãe no vão das portas giratórias? Como um guarda-chuva jogado num cesto, ela teria de arrancar a auréola e a cânula de metal que ainda a deixam respirar. Seria meio bizarro uma mulher na fila do banco com um buraco escancarado e barulhento no pescoço. No carro a caminho do banco, notei que minha mãe não é mais humana. Agora, transformou-se em passarinho. Pouca pena e muito osso. Pelo orifício na garganta, ela despeja um irritante som — disco de vinil empenado ao sol. A mãe é um passarinho rouco e desafinado. E não sabe voar.
Camila tem os seios grandes. São bonitos e se insinuam pelo decote. Entrego-lhe o cartão e explico que não funciona, que preciso sacar a aposentadoria da minha mãe. Camila é caixa do Santander. Quando digo a palavra mãe, ela nota a mulher esquelética, feia e desafinada ao meu lado. Tem a mesma reação da maioria: pena. Preferiria que sentissem nojo. Seria mais honesto. Ela pede a identidade da mãe, digita alguns números e confere o saldo. Estende um papel e solicita que a mãe o assine. Igual à identidade, por favor. E devolve o documento para a mãe copiar a própria assinatura. Vai que o câncer afete também a caligrafia. Ao conferir algo no balcão ao fundo, noto que Camila tem um corpo bonito. A bunda é harmônica ao restante do conjunto. Tenho dúvidas de que seios sejam naturais. O cabelo está preso num coque no alto da cabeça. O pescoço me chama a atenção. Ela retorna ao caixa, sorri e me entrega novecentos e trinta reais. Cato meu passarinho desafinado pelo braço e vamos pedir a segunda via do moribundo cartão. A tarja magnética também deve estar com câncer. Com certeza, pegou da mãe.
No Itaú, pegamos a senha setenta para atendimento prioritário. À nossa frente, um homem de muletas, malvestido e desdentado. Pode ter vinte e cinco ou quarenta e cinco anos. É impossível definir a idade de quem vive à beira da morte. Duas mulheres gordas (mãe e filha, possivelmente) seguram o número sessenta e nove entre os dedos rechonchudos. Uma delas veste uma blusa parecida com a da minha mãe. Ambas as blusas são feias. O mau gosto do pobre é, quase sempre, uma unanimidade. O segundo banco em menos de meia hora parece uma visita eterna ao inferno. A mãe está muito cansada. Deve ser difícil respirar por um nariz de metal, com apenas um buraco, pregado no pescoço. Espero que o meu nariz morra comigo no lugar onde resolveram colocá-lo: no meio do rosto. E que nunca me deixe na mão.
Há duas filas. Temos o privilégio de cadeiras plásticas duras para esperar. Somos prioritários: o homem de muletas, as mulheres gordas e o passarinho desafinado. Os demais precisam esperar de pé a passos lentos em direção ao caixa. O boi segue resignado pelo estreito corredor do matadouro. Aguardamos um sinal luminoso com o número. No banco, também somos apenas um número.
Os cabelos da mãe estão brancos, desalinhados e feios. Ela tem vergonha de ir ao salão. Também não me deixa contratar um cabeleireiro para atendê-la em casa. A vaidade da mãe se resume a manter limpas as auréolas da traqueostomia. É uma questão de sobrevivência. O sapo não pula por boniteza, mas por necessidade. Em casa, abandonada na cama instalada na sala, a mãe parece melhor, mais forte, com uma cor próxima à de um ser humano. Mas a comparação é com ela mesma, com o que era e no que se transformou. Chega a ser covardia. No meio do povo, numa agência bancária, não passa de uma velha doente, que mal se locomove, respira com dificuldade e muitos ruídos, e não fala.
No caixa, digito outra senha. A mãe copia a própria assinatura. E, por indicação do funcionário, seguimos a outra sala para resolver a questão bancária da mãe, para que ela não precise, nem de vez em quando, ir a uma agência. Eu cuido disso. Sempre cuidei. E não tenho a menor intenção de roubar os novecentos reais que ela recebe de pensão pela morte da filha mais nova. Quando ela morrer, avisarei o INSS, cancelarei o benefício, acabarei com a peregrinação às agências bancárias, colocarei a minha mãe num cemitério e, se necessário, pedirei um empréstimo ao Itaú para quitar as dívidas funerárias. Caso encerrado. A mãe não entende nada da conversa com o caixa: conta conjunta, cartão adicional, etc. Ela apenas me olha e esboça algo que imagina ser um sorriso. Minha mãe aprendeu a confiar em mim. Mas não aprendeu a sorrir. Agora, é tarde demais.
É preciso muita imaginação para conversar com a mãe. Não se pode fazer perguntas de múltipla escolha. Tudo tem de ser sim ou não. Frases curtas e objetivas. Recomenda-se não exagerar na intensidade dos diálogos. Corre-se o risco de sua cabeça se descolar do pescoço. Ela é monossilábica em suas respostas: o balanço desengonçado para cima e para baixo (sim) ou para os lados (não). Uma cabeça de cabelos desgrenhados e brancos arremessada para os lados pode atingir algum desavisado. Quando jogada para baixo pode esmagar o dedão alheio. É sempre perigoso conviver e conversar com pessoas cancerosas. Melhor manter distância.
Há várias pessoas sentadas em poltronas à espera de atendimento. Quatro mesas são ocupadas por jovens de gravata. Pergunto ao segurança se há atendimento prioritário. Não, somente com senha. Explico que é o segundo banco a que levo minha mãe. A palavra mãe (ou seria o seu aspecto?) parece despertar um mecanismo adormecido de fraternidade no segurança de gestos bruscos. Ele aponta uma mesa sem nenhum cliente. Fale com aquele rapaz.
— Minha mãe tem esta conta poupança no Itaú. Preciso transformá-la em conta conjunta.
— Tem de pegar uma senha.
— Mas vai demorar. Ela já está muito cansada. E não vai conseguir esperar.
— Tem de pegar a senha. Não faço este tipo de atendimento.
Não pergunto o que o jovem de gravata quer dizer com “este tipo de atendimento”. Mas deve ser algo como não atendo mulheres que não falam, não pintam o cabelo, têm seios flácidos, coxas raquíticas, boca desdentada, cheiro estranho e são desafinadas. Alguns funcionários do Itaú não se preocupam com mulheres cancerosas. Entendo: no terceiro trimestre deste ano, o lucro do Itaú caiu quase 5% e chegou a R$ 3,4 bilhões. A vida de bancário não é nada fácil. Sempre correndo atrás de resultados.
Olho para as pessoas sentadas. Calculo pelo menos vinte minutos de espera. Encaro a mãe. Ela beira o desespero. O ar-condicionado ameniza um pouco o calor. As agências do Itaú têm ar-condicionado. Enrosco na asa direita da mãe. Outro dia, resolvemos isso. Ao passar pela porta giratória, o centro de Curitiba nos espera. O sol do meio-dia é inescrupuloso. Arde na nossa pele branca — herança do Piemonte. Preciso comprar um bom protetor solar. Não tenho conta no Itaú. E seria desagradável tratar um câncer de pele.
*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)
Excelente texto. Parabéns ao amigo Rogério.
Rogério,
Posso sugerir que você encaminhe este texto ao colunista da Revista inglesa The Economist que semana passada sugeriu que a Presidente Dilma demitisse ou trocasse o Ministro da Fazenda por conta do “fraco desempenho do PIB brasileiro”. Ou a sugestão do ilustre colunista é por conta da orientação da presidente à política econômica brasileira de tentar reduzir o spread bancário? Vou sugerir também que se mande o texto para o blog do Fabio Campana onde muitos postaram comentários criticando a orientação da política econômica brasileira em favor do artigo do The Economist.
No mais, parabéns pelo texto e saúde para você estar ao lado da sua mãe que tanto necessita da sua ajuda.