6:53O Itaú tem ar-condicionado

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

Ir ao banco é algo banal. Chato, mas banal. Quando se tem de acompanhar uma mãe com câncer é uma inusitada aventura. Na porta antifurto, o primeiro inconveniente. E se o metal da traqueostomia trancafiar a mãe no vão das portas giratórias? Como um guarda-chuva jogado num cesto, ela teria de arrancar a auréola e a cânula de metal que ainda a deixam respirar. Seria meio bizarro uma mulher na fila do banco com um buraco escancarado e barulhento no pescoço. No carro a caminho do banco, notei que minha mãe não é mais humana. Agora, transformou-se em passarinho. Pouca pena e muito osso. Pelo orifício na garganta, ela despeja um irritante som — disco de vinil empenado ao sol. A mãe é um passarinho rouco e desafinado. E não sabe voar.

Camila tem os seios grandes. São bonitos e se insinuam pelo decote. Entrego-lhe o cartão e explico que não funciona, que preciso sacar a aposentadoria da minha mãe. Camila é caixa do Santander. Quando digo a palavra mãe, ela nota a mulher esquelética, feia e desafinada ao meu lado. Tem a mesma reação da maioria: pena. Preferiria que sentissem nojo. Seria mais honesto. Ela pede a identidade da mãe, digita alguns números e confere o saldo. Estende um papel e solicita que a mãe o assine. Igual à identidade, por favor. E devolve o documento para a mãe copiar a própria assinatura. Vai que o câncer afete também a caligrafia. Ao conferir algo no balcão ao fundo, noto que Camila tem um corpo bonito. A bunda é harmônica ao restante do conjunto. Tenho dúvidas de que seios sejam naturais. O cabelo está preso num coque no alto da cabeça. O pescoço me chama a atenção. Ela retorna ao caixa, sorri e me entrega novecentos e trinta reais. Cato meu passarinho desafinado pelo braço e vamos pedir a segunda via do moribundo cartão. A tarja magnética também deve estar com câncer. Com certeza, pegou da mãe.

No Itaú, pegamos a senha setenta para atendimento prioritário. À nossa frente, um homem de muletas, malvestido e desdentado. Pode ter vinte e cinco ou quarenta e cinco anos. É impossível definir a idade de quem vive à beira da morte. Duas mulheres gordas (mãe e filha, possivelmente) seguram o número sessenta e nove entre os dedos rechonchudos. Uma delas veste uma blusa parecida com a da minha mãe. Ambas as blusas são feias. O mau gosto do pobre é, quase sempre, uma unanimidade. O segundo banco em menos de meia hora parece uma visita eterna ao inferno. A mãe está muito cansada. Deve ser difícil respirar por um nariz de metal, com apenas um buraco, pregado no pescoço. Espero que o meu nariz morra comigo no lugar onde resolveram colocá-lo: no meio do rosto. E que nunca me deixe na mão.

Há duas filas. Temos o privilégio de cadeiras plásticas duras para esperar. Somos prioritários: o homem de muletas, as mulheres gordas e o passarinho desafinado. Os demais precisam esperar de pé a passos lentos em direção ao caixa. O boi segue resignado pelo estreito corredor do matadouro. Aguardamos um sinal luminoso com o número. No banco, também somos apenas um número.

Os cabelos da mãe estão brancos, desalinhados e feios. Ela tem vergonha de ir ao salão. Também não me deixa contratar um cabeleireiro para atendê-la em casa. A vaidade da mãe se resume a manter limpas as auréolas da traqueostomia. É uma questão de sobrevivência. O sapo não pula por boniteza, mas por necessidade. Em casa, abandonada na cama instalada na sala, a mãe parece melhor, mais forte, com uma cor próxima à de um ser humano. Mas a comparação é com ela mesma, com o que era e no que se transformou. Chega a ser covardia. No meio do povo, numa agência bancária, não passa de uma velha doente, que mal se locomove, respira com dificuldade e muitos ruídos, e não fala.

No caixa, digito outra senha. A mãe copia a própria assinatura. E, por indicação do funcionário, seguimos a outra sala para resolver a questão bancária da mãe, para que ela não precise, nem de vez em quando, ir a uma agência. Eu cuido disso. Sempre cuidei. E não tenho a menor intenção de roubar os novecentos reais que ela recebe de pensão pela morte da filha mais nova. Quando ela morrer, avisarei o INSS, cancelarei o benefício, acabarei com a peregrinação às agências bancárias, colocarei a minha mãe num cemitério e, se necessário, pedirei um empréstimo ao Itaú para quitar as dívidas funerárias. Caso encerrado. A mãe não entende nada da conversa com o caixa: conta conjunta, cartão adicional, etc. Ela apenas me olha e esboça algo que imagina ser um sorriso. Minha mãe aprendeu a confiar em mim. Mas não aprendeu a sorrir. Agora, é tarde demais.

É preciso muita imaginação para conversar com a mãe. Não se pode fazer perguntas de múltipla escolha. Tudo tem de ser sim ou não. Frases curtas e objetivas. Recomenda-se não exagerar na intensidade dos diálogos. Corre-se o risco de sua cabeça se descolar do pescoço. Ela é monossilábica em suas respostas: o balanço desengonçado para cima e para baixo (sim) ou para os lados (não). Uma cabeça de cabelos desgrenhados e brancos arremessada para os lados pode atingir algum desavisado. Quando jogada para baixo pode esmagar o dedão alheio. É sempre perigoso conviver e conversar com pessoas cancerosas. Melhor manter distância.

Há várias pessoas sentadas em poltronas à espera de atendimento. Quatro mesas são ocupadas por jovens de gravata. Pergunto ao segurança se há atendimento prioritário. Não, somente com senha. Explico que é o segundo banco a que levo minha mãe. A palavra mãe (ou seria o seu aspecto?) parece despertar um mecanismo adormecido de fraternidade no segurança de gestos bruscos. Ele aponta uma mesa sem nenhum cliente. Fale com aquele rapaz.

— Minha mãe tem esta conta poupança no Itaú. Preciso transformá-la em conta conjunta.

— Tem de pegar uma senha.

— Mas vai demorar. Ela já está muito cansada. E não vai conseguir esperar.

— Tem de pegar a senha. Não faço este tipo de atendimento.

Não pergunto o que o jovem de gravata quer dizer com “este tipo de atendimento”. Mas deve ser algo como não atendo mulheres que não falam, não pintam o cabelo, têm seios flácidos, coxas raquíticas, boca desdentada, cheiro estranho e são desafinadas. Alguns funcionários do Itaú não se preocupam com mulheres cancerosas. Entendo: no terceiro trimestre deste ano, o lucro do Itaú caiu quase 5% e chegou a R$ 3,4 bilhões. A vida de bancário não é nada fácil. Sempre correndo atrás de resultados.

Olho para as pessoas sentadas. Calculo pelo menos vinte minutos de espera. Encaro a mãe. Ela beira o desespero. O ar-condicionado ameniza um pouco o calor. As agências do Itaú têm ar-condicionado. Enrosco na asa direita da mãe. Outro dia, resolvemos isso. Ao passar pela porta giratória, o centro de Curitiba nos espera. O sol do meio-dia é inescrupuloso. Arde na nossa pele branca — herança do Piemonte. Preciso comprar um bom protetor solar. Não tenho conta no Itaú. E seria desagradável tratar um câncer de pele.

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)

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2 ideias sobre “O Itaú tem ar-condicionado

  1. Elton

    Rogério,
    Posso sugerir que você encaminhe este texto ao colunista da Revista inglesa The Economist que semana passada sugeriu que a Presidente Dilma demitisse ou trocasse o Ministro da Fazenda por conta do “fraco desempenho do PIB brasileiro”. Ou a sugestão do ilustre colunista é por conta da orientação da presidente à política econômica brasileira de tentar reduzir o spread bancário? Vou sugerir também que se mande o texto para o blog do Fabio Campana onde muitos postaram comentários criticando a orientação da política econômica brasileira em favor do artigo do The Economist.
    No mais, parabéns pelo texto e saúde para você estar ao lado da sua mãe que tanto necessita da sua ajuda.

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