7:08As enzimas da educação

por Célio Heitor Guimarães

Há um artigo assinado pela psicóloga e pedagoga Rosely Sayão, publicado no caderno Equilíbrio da edição de ontem da Folha de S.Paulo, que todos aqueles que se preocupam com a educação neste país deveriam ler.

Depois de perpassar a preferência dos pais pelas escolas mais adequadas para seus filhos, que pode variar das “mais puxadas” àquelas com métodos “alternativos”, seguindo pelas mais bem avaliadas em exames nacionais ou na aprovação em vestibulares, pelas com maior espaço físico ou de melhor tecnologia, pelas de “tradição familiar” e até mesmo pelas de preços mais em conta, Rosely conclui que isso, lamentavelmente, pouco importa. Sabem por quê? Porque, no fundo todas são iguais. E não são as escolas que estão erradas; errado é o modelo de ensino usado no Brasil.

“Esse modelo” – destaca Rosely Sayão – “mata a sede de conhecimento, a curiosidade, a vontade de pesquisar e de questionar”.

Em outras palavras, esse tipo de escola que é impingida aos nossos filhos e netos “não ensina o aluno a pensar, não contempla as diferenças entre eles, não oferece oportunidades para a conquista da autonomia, não promove a paz, a boa convivência, a liberdade, tampouco as relações democráticas”. Na verdade, conclui a educadora, “essa escola quer alunos medianos e obedientes”.

Rubem Alves, o meu filósofo favorito, também psicólogo e professor, com uma vida toda dedicada à educação, tem opinião semelhante. E vai além: acusa as escolas de odiarem os alunos. Explica ele: “Parece que as escolas são máquinas de moer carne: numa extremidade entram as crianças com suas fantasias e seus brinquedos. Na outra saem rolos de carne moída, prontos para o consumo, ‘formados’ em adultos produtivos”.

Rosely Sayão sonha com uma escola que tivesse como centro o aluno e não as disciplinas do conhecimento, que não se importasse tanto pelas respostas, e sim por boas perguntas.

Rubem concorda e oferece uma primeira lição para os educadores: “A questão não é ensinar as crianças. A questão é aprender delas. Na vida de uma criança a gente vê o pensamento nascendo”. E lança mão de uma expressiva metáfora (que as mães tão bem conhecem): “Quando se obriga a criança a comer quando ela não está com fome, há o perigo de que ela vomite o que comeu e acabe por odiar a arte de comer”.

Estamos em época de exame vestibular para acesso ao ensino superior. Odeio os vestibulares. Aprendi com o meu querido Rubem que os vestibulares são um desperdício de tempo, de dinheiro, de vida e de inteligência. O menino ou menina passa a vida toda estudando para enfrentar o exame vestibular. Sonha ser médico, dentista, advogado, professor, engenheiro, arquiteto, jornalista ou fisioterapeuta. Tem talento para isso, quer aprender para exercer a profissão com eficiência e bons resultados. Quer servir à coletividade e ao país. Ser útil no seu campo de atividade e ao semelhante. Construir a sua vida e ser feliz na medida do possível. Mas tem de ultrapassar o maldito vestibular. Aí, os sonhos vão se dissolvendo e perdem-se no meio do caminho.

Durante a infância e adolescência, as crianças/jovens vão armazenando conhecimentos e informações, no mais das vezes, desnecessários e até mesmo estúpidos. Só para enfrentarem, na conclusão do ensino médio, a disputa do vestibular. Passados os exames, como acentua Rubem Alves, “a memória se encarregará de esquecer tudo, porque a memória não carrega peso inútil”.

No final de 2013, meu neto Eduardo deverá submeter-se ao dito exame. E já sinto dores no estômago. Lembro-me da narrativa de Rubem, que tem netas mais velhas. Contou ele que, um dia, topou com uma das neta lendo um livro de biologia. Devia estar se preparando para o vestibular. Mas não viu nenhum entusiasmo no rosto dela. Apenas uma expressão de tédio. Quis saber por que. Ela indicou-lhe, com o dedo um parágrafo assim composto: “Além da catálase, existe nos peroxíssomos enzimas que participam da degradação de outras substâncias tóxicas, como o etanol e certos radicais livres. Células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carboidratos. O citosol (ou hialoplasma) é um colóide… No ciosol das células eucarióticas, existe um citoesqueleto constituído fundamentalmente por microfilamentos e microtúbulos, responsável pela ancoragem de organóides…”.

Deus do céu! E eu – como o Rubem – que não sabia disso?! Como pude viver até aqui nessa ignorância?

Mas meu neto e os futuros vestibulandos vão ter de saber. Se não, não terão nenhuma chance no vestibular. Ainda que pretendam ser apenas advogados, engenheiros, jornalistas, filósofos, sociólogos, poetas, arquitetos, economistas ou técnicos em eletrônica.

Tenho muita pena deles.

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2 ideias sobre “As enzimas da educação

  1. Ivan Schmidt

    Parabéns Célio Heitor. Mais uma vez você descreveu, com propriedade, uma das muitas anomalias persistentes entre nós, como o famigerado vestibular. Para a prova de filosofia desse ano, a UFPR está cobrando dos meninos e meninas que leiam Aristóteles e Descartes, quando deviam pedir, isto sim, que buscassem luzes em Rubem Alves, Darcy Ribeiro e Marilena Chauí, para citar uns poucos nativos…

  2. Elton

    Dá-lhe Noel Rosa.
    Filosofia.
    O mundo me condena, e ninguém tem pena
    Falando sempre mal do meu nome
    Deixando de saber se eu vou morrer de sede
    Ou se vou morrer de fome
    Mas a filosofia hoje me auxilia
    A viver indiferente assim
    Nesta prontidão sem fim
    Vou fingindo que sou rico
    Pra ninguém zombar de mim
    Não me incomodo que você me diga
    Que a sociedade é minha inimiga
    Pois cantando neste mundo
    Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
    Quanto a você da aristocracia
    Que tem dinheiro, mas não compra alegria
    Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
    Que cultiva hipocrisia

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