19:09As Palavras Aprisionadas

…Nenhum jornalista brasileiro chegou tão perto da emoção nacional como ele. O seu texto tem sido para nós o estabelecimento dos ritmos do coração, o registro do som que bate nas veias da nossa gente (..) uma visão dolorida do real (Jacob Klintowitz, contra-capa)

por Marcos Faerman*

O repórter e sua perplexidade. O repórter tem diante de si a realidade. A realidade é a natureza e os outros homens. Como entender o mundo que nos rodeia? Como entender os conflitos, as mentiras aparentes, as verdades ocultas? Que instrumentos usar na hora da revelação?

Saindo da abstração. O repórter tem diante de si a realidade. A realidade pode ser um homem encolhido à beira de um rio. O repórter é um ser em disponibilidade. Esta é quase que sua essência. Ele está à disposição dos ‘chefes’, do jornal em que trabalha. Cumpre horários, ordens. Num dia qualquer, uma hora qualquer é mandado para um lugar qualquer. É sempre assim. Ele poderá ter diante de si este homem ajoelhado no barro, olhando para um rio. O repórter olha para este homem. Procura saber sua história. A reportagem pedida: a vida de uma aldeia à beira de um rio corroído pelo mercúrio que mata os peixes que alimentam os homens.

O repórter e sua perplexidade. O repórter recebe ordens. O repórter diante da pauta. Os problemas de um Estado diante da poluição. O que dizem as autoridades. O que diz o povo. O que dizem os industriais. As técnicas do repórter? O papel, a caneta Bic, o gravador. Os olhares das pessoas para ele ­ como o olhar daquele homem ajoelhado à beira do rio, não dá para esquecer. Um homem de roupas rasgadas, um pescador, que me fala com uma linguagem confusa como o vento que bate na água. Uma canoa parada no rio e uma rede. O olhar do repórter que cai em suas mãos. Mãos cortadas pelo barro.

Os direitos do repórter e do jornal. A lembrança, diante daquele homem, das perguntas de um outro repórter, das inquietações de outro repórter diante de outra realidade. Parece-me curioso, para não dizer obsceno e totalmente aterrorizante que pudesse ocorrer a um grupo de seres humanos reunidos através da necessidade e do acaso, e por lucro, numa empresa, num órgão jornalístico, intrometer-se intimamente nas vidas de um indefeso e arruinado grupo de seres humanos, uma ignorante e abandonada família rural, com o propósito de exigir a nudez, a humilhação e a inferioridade destas vidas, em nome da ciência, do ‘jornalismo honesto’, da humanidade e do destemor.

Saindo da abstração. O repórter em busca da realidade. Com a sua sensibilidade. Com a sua insensibilidade. Em nome de uma empresa jornalística. Ouvindo histórias das vidas dos outros. Sugando dos outros a única coisa que eles têm, além do corpo nu: uma história, a sua vida, a sua perplexidade, as suas próprias dúvidas e pequenas verdades (e separa grande medo). E o que ele ouviu que era ‘jornalismo’. E uma linguagem que lhe disseram que era jornalística. Como esta linguagem que lhe disseram ser ‘jornalística’ se adequa aos olhos e às mãos daquele homem à beira do rio?

As lembranças do repórter. ‘Tudo isto me parece curioso, obsceno, aterrorizante’, disse certa vez um repórter. James Agee, de quem fiz a citação anterior. James Agee. Um repórter. Era um garoto quando a Life lhe pediu a história de algumas famílias rurais na época da Depressão dos EUA, de onde nasceu uma espantosa reportagem, Louvemos Agora os Grandes Homens. A Life rejeitou a reportagem de Agee por considerá-la anti-jornalística. Agee descrevia com minúcias até a respiração do pesado sono de trabalhador. Construiu um documento eterno. Seu relato é obra à altura de Steinbeck, John dos Passos, Faulkner. Quem quiser saber alguma coisa sobre a vida camponesa nos anos 30 terá que ler este relato que a Life rejeitou. O relato seria publicado na forma de livro. Trinta anos depois seria editado numa coleção de Antropologia dirigida por Lévi Strauss. Da rejeição em nome do jornalismo para a glória (as famílias camponesas assassinadas em nome do jornalismo renasceram!).

O repórter e sua formação. Todas estas idéias nascendo na cabeça do repórter a partir da questão da Linguagem da imprensa. A certeza que o repórter tem de que muitos colegas ainda têm na cabeça o mito do texto jornalístico e do texto anti-jornalístico. A certeza de que em nome do jornalismo muitos colegas rejeitariam o texto de Agee e muitos outros textos. A questão do ‘texto objetivo’. A pergunta: que texto é esse? Onde nascem e com quem a técnica jornalística ensinada pelo que é publicado nos jornais e revistas, e pelas ‘Escolas de Comunicação’. Onde nasceram e como as idéias de objetividade e neutralidade? Uma resposta possível: este texto jornalístico, esta linguagem fluente nos jornais surge com a estruturação da imprensa em forma de empresa/imprensa; empresas ligadas diretamente a determinada forma de organização da sociedade, o capitalismo. A linguagem da imprensa norte-americana se disseminando pelo mundo. A expansão de um Império e das idéias que o justificam.

Ainda a formação do repórter. A linguagem oficial da imprensa é defendida por muitos jornalistas. Ou não discutida. Ela é implantada nos jornais por jornalistas. Os Vigilantes do Texto. Às vezes, os Policiais do Texto. Uma arma na mão, a caneta. O direito que ganham de modificar o texto. O texto nasce do olhar do repórter sobre a realidade. Mas um olhar que não baixou para a realidade pode modificar as palavras. A defesa de uma linguagem. O esquecimento de que a ‘linguagem vem sempre de algum lugar’. De que a linguagem está sempre referida a uma classe social, a um grupo humano. E de que há uma linguagem do poder, como há uma linguagem de crítica ao poder. O quanto pode a linguagem do poder ser disseminada pela realidade toda, preenchendo até a linguagem dos sonhos, até se tornar uma linguagem aparentemente neutra e objetiva? (Barthes. Barthes. Barthes.) A linguagem do poder alcançando até o espaço último do senso comum. Pensar em tudo isto. E ainda analisar a forma como esta linguagem se confunde com a expressão jornalística.

Saindo da abstração. O retorno ao rio, àquele homem. A responsabilidade diante dele, daquele momento. A necessidade: saber ouvir, saber descrever. A linguagem pode chegar ao real? (Discussões: o que é o real, etc.) O jargão Jornalístico/Economicista/Sociologuês/ pode captar esta realidade? Mas é aquele homem que devemos descrever, não uma abstração! Será que é ser “literato” abrir meu mundo para aquele homem, absorver a sua realidade, a sua linguagem – achar as palavras certas para revelá-lo? E uma outra idéia: a relação entre as palavras que surgem da máquina de escrever, e aquele homem.

Ficção e realidade. Algumas idéias, a partir de James Agee. Numa novela, uma casa ou uma pessoa tem seu significado, sua existência, inteiramente a partir do escritor. No jornalismo, uma casa ou pessoa tem apenas o mais limitado dos seus significados através do repórter. Seu verdadeiro significado é muito maior. O personagem existe num ser concreto, como você e eu. ‘Seu grande mistério, peso e dignidade estão neste fato’. Outra questão: o jornalismo é James Agee, García Márquez, Eduardo Galeano, Heródoto, René Chateaubriand, Norman Mailer, Euclides da Cunha ­ eis os nomes de alguns repórteres. O jornalismo de Agee é menos literário do que a sua ficção? O jornalismo de Norman Mailer é menos literário do que sua ficção? O jornalismo é um método: trabalha como instrumento de descoberta de uma realidade, com formas próprias, anotações, pesquisa. Outra idéia: o pensamento escolástico contemporâneo, os intelectuais de gabinete, o pensamento universitário preservando a Arte e a Literatura com Maiúsculas. Esquecendo ­ em nome do Elitismo ­ o sentido mais contemporâneo do conceito de Escrita. Uma última idéia: muito da melhor literatura brasileira desta década vai ser descoberta (quando???) em alguns jornais e algumas revistas (por quem???).

Manifesto de libertação da palavra. A busca de uma realidade exige uma linguagem capaz de captá-la. Esta linguagem não é uma fuga (tese dos populistas chulos, contra os revolucionários chucros). É o único caminho para nos levar à débil captação de uma sociedade e de suas contradições. E da única coisa que interessa: o ser humano sufocado em sua vontade de ser.

*Texto extraído do livroCom as mãos sujas de sangue”, publicado em 1979
(Global Editora)

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