6:39Três filhos de uma trança

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

O fracasso é destino certo a todo pai. O precipício é logo ali. É sábado de manhã. Estou sozinho em casa com meus filhos. Enquanto dormem, faço café, leio o jornal e penso em escrever uma carta a um amigo cujo filho acaba de morrer. Poderia telefonar, mas seria um telefonema mudo. No absurdo, opto pela palavra escrita. Ela mantém a proximidade mesmo à distância. A casa segue estática no início do dia. Minha mulher está a caminho da clínica para dependentes químicos. Meu sobrinho passará o fim de semana conosco, após três meses de reclusão. Era meu dever buscá-lo. Sou um homem de pouca coragem. Faltam-me forças para entender algumas coisas. Penso nisso enquanto preparo o café. O líquido preto e quente me anima. Não viveria sem café. Viveria, é óbvio, mas talvez voltasse com ferocidade animal ao álcool. Café em excesso tinge os dentes. Álcool em excesso faz outras coisas. Uma notícia sobre acidente aéreo na Índia me chama a atenção. Um avião no ar sempre me espanta. Meu filho surge na cozinha. Pula no meu colo e sorri. O sábado começa. A casa desperta ainda em relativo silêncio.

Logo, terei de acordar minha filha para o ensaio de balé. Todo fim de ano, a apresentação. Vamos ao teatro pomposo. Ela dança duas músicas. Nós nos emocionamos. Sorri o tempo todo, recebe flores, saímos para jantar. Ela cresce rápido demais; eu envelheço rápido demais. Logo, descobrirá que a vida adulta é mais difícil que aprender a dançar balé. Deixo meu filho na cozinha agarrado a um joguinho eletrônico. Entro no quarto e acaricio os cabelos longos esparramados no travesseiro. Ela tem seis anos e é bem comprida. É magra e comprida. Seu corpo longilíneo se parece ao meu. Aos poucos, consigo com que abra os olhos. São bem azuis. Ou verdes. Não tenho certeza. Nunca tenho certeza de nada. Ela demora a despertar completamente. Digo-lhe que precisa colocar a roupa de balé. Não sei o nome da roupa de balé. Ela me guia até o guarda-roupa. Tenho em mãos saia e meia-calça brancas e um collant (pesquiso na internet como se escreve). É a primeira vez que coloco meia-calça numa mulher. Preciso ter cuidado para não desfiar. Tive uma namorada cujos dias eram de tormenta quando um simples fio deixava-lhe um risco pelas pernas. A saia e o collant são fáceis de colocar. Mas nada se compara à arrumação do cabelo.

Na caixinha de metal, dezenas de elásticos coloridos. Preciso de apenas um para amarrar o cabelo da bailarina doméstica. Não tenho a menor ideia de como sair daquele labirinto cromático. Olho para os pequenos pontos coloridos com o desespero do daltônico diante do teste de Ishihara. Minha filha opta por azul, vermelho e preto. Identifico apenas o preto. São necessários três? — pergunto com a ingenuidade do iniciante. Se arrebentar — ela responde de maneira lacônica. Tenho duas alternativas: rabo-de-cavalo ou trança. Rabo-de-cavalo será simples. Penteio os cabelos da bailarina para trás. Deslizo a escova com cuidado. Com o chumaço nas mãos, passo o elástico preto pelos dedos em direção ao futuro rabo-de-cavalo. A primeira tentativa é um fracasso parcial. O elástico não consegue dar a terceira volta. Atrapalho-me com a imensa quantidade de cabelo. Tenho apenas dez dedos contra milhares de fios. Algumas batalhas me parecem impossíveis. Na tentativa de terminar logo, arrebento o elástico. Minha filha é mesmo muito sábia. Com o azul em mãos, tento novamente. Não consigo. Começo a ficar nervoso.

Após algumas tentativas frustradas, resolvo arriscar uma trança. No celular, uma mensagem de minha mulher. Está retornando a Curitiba com o meu sobrinho. Ele tem vinte anos. Não conheceu o pai. A mãe morreu há onze anos. Parece que a vida de um órfão não é muito boa. Talvez me considere um pai. A psicóloga nos alerta que a idade afetiva dele é a de um adolescente de quinze anos. Chego aos quarenta anos com três filhos: um menino de três; uma menina de seis; e um adolescente entre quinze e vinte anos. Todos precisam de algum tipo de proteção. Logo, precisarão apenas de liberdade.

A trança também me parece simples. Divido todo o cabelo em três partes relativamente iguais. Na infância trabalhei numa fábrica de artesanatos. Tinha alguma habilidade em fazer trançados com junco. O tempo nos faz esquecer também coisas importantes. Depois de divididos, basta passar os cabelos para um lado e outro. Uma dança primitiva. Ao final, o nó com o elástico azul. Sofro, mas consigo amarrar a ponta. Ao virar-se para mim, noto que construí uma bailarina bem desajeitada. O cabelo está torto para o lado direito. A trança a transformara numa bailarina manca. Sinto vergonha do fracasso. Ela olha no espelho e diz que está bonito. Às vezes, os filhos têm clemência dos pais. Ligo para a prima que a levará ao ensaio. Peço socorro. Explico que a trança ficou torta, que o rabo-de-cavalo não deu certo. Está disposta a me salvar. Sempre é possível salvar um daltônico atrapalhado.

Descemos os três: meu filho com a bola de futebol nas mãos; minha filha com a trança torta na cabeça; eu com o fracasso nas costas. Ao colocá-la no carro, entrego à prima da minha mulher a escova e os elásticos. Admito a derrota com o silêncio. Ela diz que dará um jeito. Tenho certeza de que desenhará uma linda bailarina. O esboço que fiz carece de delicadeza. Meu filho me puxa pela mão em direção à quadra de futebol. Eu sei jogar futebol. Não sei fazer tranças. Logo, meu sobrinho estará comigo para o fim de semana. O cabelo dele é bem curto. Não precisa de trança. Ele não gosta de futebol. Preciso pensar em algo. Quando retornar à clínica para o tratamento, ainda terei três filhos. E o precipício seguirá logo ali.

*Publicado no site Vida Breve (http://www.vidabreve.com)

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