9:02O dia em em que morri

por José Maria Correia

Certa vez, há mais de vinte anos, em uma das minhas muitas jornadas, participei de um encontro de dinâmica de grupo.

Chamava-se O PROCESSO e era conduzido por um renomado psicanalista, professor da Unicamp, o Dr. Simão.

O objetivo era o autoconhecimento.

Simão, já falecido, era também um filósofo e mestre em Sufismo – portanto, um guru.

Reunímo-nos, vários amigos, em um ambiente isolado destinado a retiros espirituais.

As práticas exaustivas começavam nas primeiras horas da manhã e duravam o dia todo. Simão nos ensinou a praticar a regressão, não para outras vidas, mas para esta mesmo.

Com técnicas de meditação e oxigenando o cérebro, em completo isolamento e orientados cientificamente,conseguíamos alcançar a memória mais profunda.

Cheguei em estado de semi hipnose até a me reencontrar com o pai e a mãe no quarto onde estava meu berço. Lembrei das cores, da juventude de ambos, do amor e do carinho; e felizmente gravei essas imagens em minha memória até hoje e para sempre , espero.

Com Simão, um a um revi os eventos importantes de minha infância: a primeira comunhão, a formatura no primário, os brinquedos preferidos e tudo que foi no passado remoto importante para mim, como em um antigo álbum de fotografias ou um filme em oito milímetros.

Mas o mais impactante aconteceu já no encerramento.

Em uma tarde ensolarada, O Dia em que Morri.

O mestre Simão me fez mergulhar em um profundo estado de concentração, me tomou pela mão e saímos caminhando por um campo florido e deserto.

Chegando em uma planície, encontramos uma pequena cruz muito simples -e lá estavam minhas iniciais J.M.

Sentamo-nos na relva e Simão disse com gravidade: “Este é um encontro antecipado com a sua sepultura”. Em seguida me deu um caderno para ler e se foi, mandando que eu aguardasse o retorno.

Li com preocupação. A orientação era para que eu, ali em total solidão, recordasse toda a minha vida e visualizasse as pessoas que iriam me fazer a última visita e que anotasse a reação de cada um.

Ali fiquei por horas, a tarde toda. Fui anotando, me emocionando sempre. Quando chegou a última página, havia outra orientação: que eu escrevesse tudo que tive oportunidade de fazer e desisti por falta de ousadia, de iniciativa, de desprendimento ou por medo das críticas sociais.

Simão somente retornou no crepúsculo. Chegou com as estrelas que surgiam na noite clara , de lua cheia. Abraçou-me fraternalmente.

Voltamos em silêncio pela pradaria.

Eu tinha anotado tudo, minhas frustrações, os limites que nunca existiram, mas que eu construíra para me proteger, os desejos irrealizados e os nomes dos que haviam estado naquela relva e na planície para o último adeus.

Não esqueci de nada, as filhas, mulher, amigos, amigas, falsos amigos e indiferentes e os que compareceram por obrigação para cumprir um ritual.

Chegando ao retiro, entramos em uma sala que estava com as luzes apagadas e onde eu nada enxergava. Ainda estava muito cansado das emoções.

De repente as luzes foram acesas, a sala estava cheia dos colegas do PROCESSO e no centro havia uma mesa de aniversário de criança igual àquelas que a mãe preparava para mim e da forma que eu havia descrito dias antes para o Simão, sem saber do objetivo.

O Simão me colocou no centro e todos começaram a cantar o parabéns. Não era a minha data, mas havia muitos docinhos, refrigerantes e um bolo.

O mestre então me disse: “Esta festa é para você que acabou de voltar de um sepultamento que adiamos, mas agora com a oportunidade de refazer tudo que deveria ter feito e não fez, de corrigir as trajetórias enquanto ainda é tempo, já que eu passara a me conhecer em profundidade.

Não consegui conter as lágrimas em meio aos abraços dos amigos e amigas.

Eu poderia e deveria passar a viver segundo os meus verdadeiros critérios e não sob o de outros, os preconceitos e os condicionamentos adquiridos.

Simão me deu naquela tarde inesquecível – e por isso a rememoro agora, algo que nunca esperei receber.

UMA SEGUNDA VIDA

Uma vida para ser vivida em plenitude, com intensidade, sem amarras e somente com os meus desígnios, minhas pretensas loucuras, riscos, paixões e insensatez.

E assim tenho feito tão certo de que, como o Guru Simão se foi, é que não terei uma terceira vida.

E com essa mesmo, rota, ferida, entusiasmada, poética, angustiada e desafiadora é que persisto e prossigo, já liberto e solto, dando pouca importância às críticas e aos juízos de valor que tanto me preocupavam. Sigo simples como uma folha no ar e até o dia que tudo que docemente recordei se apague inevitavelmente e se torne esquecimento no eterno.

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6 ideias sobre “O dia em em que morri

  1. Peter Zero

    Texto interessante que demonstra que podemos e devemos recomeçar sempre, suprimindo ou enfrentando nossos medos. Todos os dias é um novo recomeço, o que precisamos é nos desprender do passado, tarefa dificílima para muitos.

  2. Antonio Celso

    Você vai ser prefeito de Matinhos em 3012, já foi o pior de sua história até hoje.

    Zé Beto ficou doido com o seu professor Requião.

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