5:55Cupim se mata com álcool

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

Domingo, votarei para prefeito. Duas teclas selecionadas, uma foto e pronto. Sairei por uma rua sem buracos. É fácil entender: moro num bairro classe média alta. Eu e o governador somos colegas de votação na escola estadual. Jamais haverá pedra ou buraco naquele caminho. Em época de campanha eleitoral, reclama-se muito das ruas esburacadas. Os buracos surgem com maior velocidade que a nossa (in)capacidade de tapá-los. A rua da casa da minha mãe está cheia de buracos. Mas ela não reclama. Apenas lamenta com um olhar desanimado os buracos que os cupins fazem em sua casa de madeira. Qualquer dia, a visitarei e os cupins estarão sambando sobre os escombros da casa. Bem que podiam mastigar a minha mãe também. Resolveriam um grande problema. Quando não se tem mais a quem recorrer, os cupins são uma alternativa. Cupins não gostam de mastigar mulheres com câncer. Ninguém gosta. A não ser o próprio o câncer — este sujeito inescrupuloso: rói o pescoço da mãe alheia sem qualquer pudor. Chega a ser obsceno.

A mãe não reclama do péssimo estado de conservação da sua rua. Talvez porque tenha um buraco que não a deixa falar. É um alto-falante afônico. Se alguém fala muito, faça um buraco na garganta. É garantia de silêncio. O povo chama de cratera os buracos no antipó, por menores que sejam. O buraco no pescoço da mãe, os médicos chamam de traqueostomia. Mas eu chamo de abismo. A rua onde mora minha mãe é um pescoço com várias traqueostomias. Mas é fácil resolver: basta votar no prefeito cuja prioridade são buracos. Difícil é saber com que buraco um político está preocupado. Já o abismo no pescoço da minha mãe não tem mais jeito. Ficará lá vazando por algum tempo aquele líquido viscoso e fedorento. O pescoço da minha mãe é uma rua com apenas um buraco, impossível de desviar.

Não bebo cerveja há doze anos. Nada de álcool. Tenho medo de que o corpo se incinere numa valeta feito o do avô paterno. Minha mãe nunca tomou cerveja. Mas a cada dia está mais parecida com caveiras bêbadas e divertidas. Gosto desta propaganda estúpida: quatro rapazes chegam à praia, bebem cerveja durante anos. Até que morrem, viram caveiras e continuam tomando cerveja. Passa uma mulher bonita e magra. Uma das caveiras diz: “Só pele e osso”. E caem na gargalhada cadavérica. Minha mãe não tem este senso de humor. Ela nunca teve senso de humor algum. Não é uma caveira divertida. É apenas uma caveira. Talvez precise ir à praia e tomar cerveja. Não, não é uma boa ideia. Meu pai gostava muito de cerveja. E de todos os outros tipos de bebidas alcoólicas também. Há algum tempo, trocou a cachaça por um pequeno altar atulhado de figuras sagradas. Substituiu um vício por outro. Pelo menos deixou de querer nos matar, de nos transformar em caveiras antes do tempo.

Quando o pai despontava na esquina, após uma parada no boteco, tentávamos adivinhar quem ele iria escolher para matar. Ele sempre escolhia um. Não tenho a menor ideia do critério utilizado. Ele quis matar a minha irmã. A gente não deixou. Ele quis matar a mãe. A gente não deixou. Ele quis matar o meu irmão. A gente não deixou. Ele quis me matar. Os outros não deixaram. A gente se revezava o tempo todo para sobreviver. Quase deu certo. Um dia, a minha irmã morreu aos 27 anos. Nem foi preciso matá-la. Quando voltei do hospital, o pai estava diante de casa, cujas tábuas já serviam de alimento para os cupins. Não disse nada. Ele lamentou timidamente a morte da filha. Nunca fomos muito bons para encarar a intimidade da morte. Tive vontade de lhe dizer: “Agora, não precisa mais”. Ele não entenderia. E também não valia a pena voltar a um pai que deixara de existir: aquele era somente um homem com um cérebro esburacado.

Se o pai tivesse cumprido todas as promessas filicidas, não estaríamos nesta complicada situação. Minha irmã já morreu. Matar os outros dois filhos — eu e meu irmão — nos livraria do câncer da mãe. A mãe, por sua vez, já estaria morta e não morrendo aos pedaços, em gotas viscosas. E, se tivesse colocado fogo na casa, como sempre ameaçou com o vidro de álcool nas mãos, teria matado todos os cupins também. Às vezes, fazemos escolhas equivocadas na vida. E o câncer sempre dá um jeito de nos alcançar.

Uma noite, o pai caiu na esquina. Não conseguiu chegar em casa. Ficamos aliviados. Não tentaria nos matar. Da esquina, arrastei-o até o portão. Não precisava me preocupar: era nada mais que um homem estirado no chão. Minha sorte é que naqueles dias não havia nenhum buraco na rua — o que facilitou um pouco o meu trabalho de arrastar um pai. Não lembro quem era o prefeito. Quem sabe fosse um sujeito preocupado com os buracos na rua da minha mãe. Penso nos buracos somente agora — muitos anos depois. Naquela noite, minha única preocupação era dar banho no pai, trazê-lo de volta. Após muita luta com o corpanzil que me gerara, consegui enfiá-lo debaixo do chuveiro, sentando numa cadeira. A cena é quase patética. Tinha de manter a sincronia dos movimentos entre abrir o chuveiro, amparar o pai e lavá-lo. A mãe fez um café bem forte. Ela ainda não se preocupava com o buraco no pescoço. Queria apenas não ver nenhum filho morto antes do tempo. Não deu muito certo. Minha irmã morreu, sem que ninguém pudesse fazer nada. Nem Deus. Acho que a mãe amaldiçoou Deus na manhã da morte da filha. Mas ela não dá o braço a torcer. A fé remove montanhas. Pena que não cura o câncer no pescoço da nossa mãe.

Depois de relativamente sóbrio, levamos o pai para a cama. Ele dormiu bastante. Recuperou as forças. No outro dia, teria de pensar em novas estratégias de como matar os filhos e a mulher: a facadas, com a foice, com o machado, esganados, incinerados. Matar os filhos nunca é uma decisão fácil.

Nas eleições, o pai me pergunta em quem deve votar. Eu indico o meu candidato. Desta vez, ele já definiu o voto. Disse que é preciso acabar com os buracos na rua da casa da minha mãe. Não é uma grande preocupação. Logo a casa será desocupada. Eles irão embora. Eu já a abandonei há bastante tempo. Minha irmã trocou a casa de madeira por uma tumba de concreto. O irmão está por aí. A casa vai ficar lá até que os cupins a derrubem. Não estou preocupado com isso. Precisamos mesmo é de um prefeito que cuide do buraco no pescoço da minha mãe. Acho que nenhum dos dois candidatos é capaz. Ou, sequer, está interessado nesta prioridade. Portanto, votarei naquele que tiver a melhor proposta para os cemitérios de Curitiba. É para lá que em breve levaremos a mãe.

Depois, se o pai quiser, posso ajudá-lo a colocar fogo na casa. Se não matamos os filhos, é sempre possível acabar com os cupins.

*Publicado no site Vida Breve (http://www.vidabreve.com)

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Uma ideia sobre “Cupim se mata com álcool

  1. Sandra

    Li emocionada o artigo. Só quem já passou por um câncer na família consegue entender o Rogério Pereira.

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