8:00Pirações de primavera

por Ivan Schmidt

Encontraram-se casualmente em algum ponto da galáxia o grande jornalista norte-americano H. L. Mencken (1880-1958) e o quiromante, adestrador de pulgas e apátrida Josef Nório Sculhoff (1930), que passou muitos anos numa das áreas mais aprazíveis de Bagdá, onde a cada três horas se registrava um atentado a bomba e de quem nunca mais se teve notícia.

O encontro foi efusivo e apesar dos longos anos transcorridos desde a última vez que ambos estiveram juntos numa manifestação em defesa do direito de voto dos pigmeus, reconheceram-se de imediato e uma profusão de abraços e palmadas nas costas chamou a atenção duma patota de et’s que por ali disputava animada partida de cuspe à distância.

Passada a emoção do reencontro, Sculhoff perguntou a Mencken se tivera algum interesse nas eleições brasileiras, ele que era veteraníssimo em coberturas monumentais como a morte de Stalin, a coroação do papa Pio XII e a travessia do Atlântico no vôo solitário de Charles Lindberg (o que jamais se soube é que Mencken cruzou o oceano no mesmo trajeto feito pelo ás norte-americano, mas de barco a vela).

A resposta de Mencken foi lacônica quanto à eleição no Rio, a seu ver uma coisa sem graça, com um único candidato, um gajo que se diz amigo do ex-presidente Lula, o Eduardo Paes, que poucos dias depois lançava, numa demonstração patética de quanto o político brasileiro tem vocação para puxa saco, o atual governador Sérgio Cabral a vice-presidente na chapa de Dilma em 2014. O mais lamentável é que o cargo de vice é ocupado pelo presidente licenciado do partido deles, o PMDB, Michel Temer, que no ato se confessou muito confortável no posto e completamente indisposto a abrir espaço para aventureiros, mandando de volta a saia justa ao boquirroto prefeito carioca.

Sobre a eleição no Rio, ajuntou Mencken, foi mais chata que um jogo do Canto do Rio contra o Bonsucesso pelo penúltimo lugar no campeonato carioca em meados do século passado.

Tirando a eleição no Recife, onde Lula levou autêntica chifrada de bode com a derrota imposta a seu candidato, senador Humberto Costa, pelo governador Eduardo Campos, neto de Miguel Arraes e herdeiro do quase extinto lume do socialismo no Brasil que se esforça para reacender (com alguma esperança) e da tunda do Márcio Lacerda no também lulista Patrus Ananias, em Belo Horizonte, o momento é de grande emoção em São Paulo com a arrancada soberba do azarão Fernando Haddad sobre José Serra, no segundo turno.

Mas, diante de um Sculhoff disposto a absorver as ponderações do mestre, há décadas sem ouvir aquele que considerava o fundador da ciência política moderna, demolidor de reputações tidas como intocáveis ou indestrutíveis, que obrigou políticos e empresários poderosos dos Estados Unidos a se ajoelhar pedindo arrego e, justamente por isso, demitido de todos os grandes jornais de seu país, Mencken segredou que se houve algum agito foi observado nas eleições para prefeito da freguesia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, onde nas calendas o bravo cacique Tingui havia apresentado as delícias do fruto da araucária ao embasbacado emboaba Heleodoro Ébano Pereira.

Depois de um primeiro turno morno em que o prefeito atual sentiu o travo bilioso da derrota ficando em terceiro lugar, mesmo com todo o aparato da máquina do governo estadual, os candidatos ungidos para o segundo turno, Ratinho Junior e Gustavo Fruet, procuraram arregimentar os apoiadores para o lance final. De cara Ratinho recebeu o apoio do partido do senador Roberto Requião (PMDB), a cavaleiro de um estrondoso feito, a eleição de um só de seus candidatos a vereador. Pouco depois veio a adesão do candidato a prefeito pelo MDB Velho de Guerra, o ex-arenista Rafael Greca de Macedo, que esparramou sobre a távola as fichas dos 100 mil votos obtidos no dia 7, provavelmente numa das derradeiras manifestações cívicas da Tradicional Família Curitibana.

O governador e o prefeito preteridos, ferroados pela indiferença de um eleitorado que contabilizavam como propriedade privada, como passarinhos na muda, recolheram-se num mutismo ensurdecedor. Acho que já te disse isso, engrolou Mencken, mas adoro imensamente a democracia: “Ela é incomparavelmente idiota e, por isto, tão divertida. Ela não exalta os parvos, os covardes, os oportunistas, os pilantras e os blefes? Sim, mas a tortura de vê-los subir na vida é compensada pela alegria de vê-los cair do galho”.*

Sculhoff, com a experiência de ter formulado o mapa astral de importantíssimos chefes de governo e altos dignitários mundiais, tais como Idi Amin, Pol Pot e Sadam Hussein, não conseguiu segurar a sonora gargalhada, chamando a atenção da patota do cuspe. Tem mais, prosseguiu Mencken, é que o úbere fertilíssimo a que costumam chamar de democracia dá licença aos candidatos derrotados a anunciar — sem titubeios — que migraram de mala e cuia para o bivaque dos vencedores.  Imaginam que isto é um pressuposto democrático plenamente aceito, mas como escrevi alhures “o democrata que pula no abismo para bater suas asas e entoar aleluias acaba com o nariz no chão. As sementes deste desastre estão em sua própria estupidez: ele não consegue se livrar daquela ingênua ilusão, tão cristã, de que a felicidade é algo que só se consegue tomando-a de outro”.

Outros políticos alinhados ao prefeito no primeiro turno tomaram o rumo da campanha de Fruet, aproveitando o vácuo da neutralidade anunciada pelo prefeito Luciano Ducci, que liberou os companheiros. Independentemente dos apoios de um e outro, o fundamental para os candidatos é investir na capacidade de escolha do eleitor, afinal, o grande interessado em colocar na prefeitura o melhor preparado para administrar uma das capitais mais desenvolvidas do país.

O problema é que determinados candidatos, comentou Mencken, acham que os eleitores engolem sem mastigar as pretensas verdades que proferem. Sculhoff simplesmente concordou com o gesto típico de balançar a cabeça, ao que Mencken retrucou que um dia os governantes, finalmente, haverão de reconhecer, embora para muitos deles seja tarde, que “o homem mais perigoso é aquele capaz de pensar por si próprio, sem ligar para os tabus e superstições em voga”.

(*) As citações de H.L. Mencken foram extraídas de O livro dos insultos, Círculo do Livro, SP, organizado e traduzido por Ruy Castro).

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