6:05Adeus, Ted

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

Jamais pensei que chegaria vivo
ao dia da minha morte.
Francisco Alvim

27 de setembro de 2012
Ted morreu aos 72 anos. Ao jogar o corpo para o alto, suas pernas se enroscavam ao pescoço do adversário. O tombo era espetacular. Tudo simulado. O público delirava, urrava, em êxtase complacente com a fraude, a mentira. Meu pai apenas me olhava. Sentados no sofá de corino, cujo rombo se escondia sob um tapete de pano, assistíamos ao ocaso de Ted Boy Marino. Seus dias no ringue estavam chegando ao fim. Depois, ainda seguiria com Os Trapalhões durante algum tempo dando piruetas e inventando golpes extraordinários. Era um homem bonito, um galã nascido na Itália, criado na Argentina e cremado no Brasil. O telecatch era a pornochanchada do UFC atual e seus brutamontes tatuados. Tínhamos chegado a Curitiba naquele fim da década de 1970. A cidade grande ainda nos assustava. A televisão preto-e-branco Telefunken se mexia ao lado do fogão a lenha na casa de madeira. Ao redor, a floricultura de azaleias e samambaias. Um pé na roça, outro na cidade. Eça de Queirós, quem sabe, teria gostado de nos conhecer. Aos sábados à noite, eu e meu pai estávamos diante da televisão. Não conversávamos. Somente olhávamos a briga entre homens vestidos de maneira ridícula, sufocados em malhas de contornos risíveis. Era comum Aquiles morder a testa do oponente até que o sangue explodisse na tela. O sangue na televisão preto-e-branco não é vermelho. Ainda não sabia que era daltônico. O sangue para um daltônico nunca será vermelho.

Ted morreu em decorrência de uma trombose. O corpo ainda tinha alguns músculos à mostra. Com o tempo, os músculos se transformam em lembrança. Andava com dificuldade. Não atirava as pernas para o ar em suas tesouras voadoras. Se o fizesse, não encontraria nada mais que um lutador imaginário, um fantasma de décadas, ancorado a um canto do ringue. Durante as lutas, não trocávamos palavra. Meu pai olhava fixo para a tela. Admirava a força e a fúria de Aquiles — o roedor de testas. Eu gostava da desengonçada Múmia e do perfeito Mister Argentina. Eu era uma criança. Meu pai, um homem. Não havia assunto entre nós. Hoje, também sou um homem. E continuamos em busca de qualquer assunto, de uma única palavra que nos seja íntima. Nunca lhe perguntei se sentia vontade de me espancar, de ser um Ted, de enlaçar meu pescoço com as pernas e sufocar-me. A única vez que tentou, corri feito o Forrest Gump atrás de casa. Só me faltava um par de tênis branco da marca Nike. Ele não me alcançou. A mãe tinha muito mais agilidade para nos capturar. Quase arrancava nossas orelhas, marcava nossa pele com o slogan das Havaianas. Minha irmã apanhava todo dia. Eu e meu irmão quase sempre escapávamos do ringue montado no terreiro de casa. Meu pai não falava conosco. Mas não nos batia. Minha mãe falava muito pouco. E nos batia muito. O telecatch caseiro da infância tem regras pouco claras ou definidas.

29 de setembro de 2012
Hebe Camargo morreu aos 83 anos. Sempre que recebia um convidado em seu programa de TV, ela tascava uma bicota, um selinho, em homens e mulheres. Tinha obsessão pelo lábio alheio. Achava quase tudo uma “gracinha”. Morreu de câncer. Meus filhos de três e seis anos não me deixam beijá-los na boca. “Na boca não pode, papai.” Eles têm razão: ainda não sou a Hebe Camargo. Ainda não tenho câncer. Minha mãe gostava da Hebe. Sempre assistia ao seu programa. Não sei se entendia muito bem aquele mundo de celebridades. Ficava diante da televisão já colorida. Acho que a Hebe era loira. Às vezes, sorria. Devia achar um escândalo os beijos da Hebe em bocas célebres. Minha mãe nunca me beijou na boca. Ela também vai morrer em breve. De câncer. Quando a visito, ela está sempre na cama, perdida entre cobertas. Não nos beijamos. Ela apenas abana a mão. Eu retribuo num aceno desajeitado, sem qualquer esperança. Minha mãe não sabe que a Hebe morreu. É melhor evitar notícias ruins em determinados momentos da vida.

30 de setembro de 2012
Autran Dourado morreu aos 86 anos. Uma tarde quente, o pai entrou na minha biblioteca. Espantou-se com a quantidade de livros que eu já havia acumulado. Olhou as prateleiras com verdadeiro interesse. Meu pai jamais leu um livro. Não que eu saiba. Nunca o vi lendo. Minha mãe lia a Bíblia. Hoje, um padre lê para ela num rádio barulhento ao pé da cama. Deus sempre encontra uma maneira de conversar com quem lhe dá ouvidos. Naquele dia, o pai me fez um estranho pedido: um livro. Sim, ele desejava ler um livro. Olhei para a imensidão colorida nas estantes e arranquei de lá Ópera dos mortos, de Autran Dourado. Por quê? Nunca saberei. Alguns dias depois, sem nada dizer ele me devolveu o romance. Não esboçou qualquer comentário. Eu não lhe perguntei nada. Ficou um silêncio entre nós, como se estivéssemos diante da velha Telefunken assistindo às tesouras voadoras do Ted.

1º de outubro de 2012
O historiador Eric Hobsbawm morreu de pneumonia aos 95 anos. Talvez Hobsbawm seja um bom assunto para conversar com meu pai, sentados no sofá de corino que arrastamos há tanto tempo.

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.