6:24Dois homens magros que se amam

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira

Nunca imaginei que me apaixonaria por um homem com tamanho despudor. Do encontro à porta até o banho, vamos nos enroscando, emaranhados sem qualquer culpa. Quando chego antes dele em casa, espero-o com um livro na cozinha ou na poltrona da sala. Se ele já me aguarda, nosso encontro é logo na entrada. Envolve-me com ânsia. O beijo é barulhento, quase escandaloso. Aproximamos os rostos, nossos braços se engalfinham numa luta brutal. Não temos vergonha do carinho que nos atira para o alto, rumo a um estranhamento difícil de descrever. Conhecemo-nos há pouco mais de três anos. Vivemos ainda a fase da paixão, da necessidade alucinada do encontro, do toque, do abraço e do beijo. A ausência nos destrói. Ele reclama uma saudade profunda. No primeiro encontro, numa manhã de inverno, ele arregalou os olhos e esboçou um tímido sorriso. Hoje, gargalhamos nus diante do espelho do banheiro. Perdemos completamente a vergonha. Ele gosta de carinhos estranhos. Sente prazer com coisas tolas, infantis. Oscila entre o sublime e o selvagem. A dificuldade de entendê-lo me fascina. O amor é algo esquisito. Não sabemos muito bem como começa, somente quando termina.

É no banho que nos amamos com inesgotável intensidade. Arrastamos os corpos rumo ao banheiro. Pelo caminho, deixamos roupas e restos do dia. Vamos limpar a pele. Abro toda a fúria da ducha. Esperamos a água aquecer. O vapor embaça o espelho e o box. Ele entra primeiro e me chama. Deixamos a água escorrer à vontade. Fecho os olhos e o abraço. Ele é mais jovem que eu. Tem a pele macia, lisinha, gostosa. Somos dois homens magros e nos amamos.

Encharco a esponja de sabonete líquido. Peço-lhe que se vire. Esfrego as suas costas, desço pelas coxas firmes, lavo os pés, toda a extensão das pernas. A barriga é firme e sem qualquer sinal de gordura. Olha-me orgulhoso da magreza semelhante à minha. Passeio por seu corpo longilíneo. Sinto prazer na viagem. Termino de esquadrinhar cada pedacinho possível daquele homem magro. Em seguida, ele pede para que eu me abaixe. A água escorre de mansinho pelo ralo. Ele retira a esponja das minhas mãos e, sem muita experiência, massageia minha pele. Faz bastante espuma, retira o excesso e esfrega no próprio corpo. O impacto da espuma no azulejo produz um som abafado: pof, pof, pof. Com o xampu na palma da mão, massageio seus cabelos. Demoro-me o quanto posso. Ele fecha os olhos e aproveita a generosidade dos movimentos. Está feliz, sente prazer. E deixa isso nítido. Não escondemos que nos amamos. Ao terminar, ficamos frente a frente sob a água morna. Antes de sair, enchemos a boca de água e espirramos um no outro. Ele dá sonoras risadas. Abraça-me pelo pescoço, beija-me e diz que me ama. Saímos.

Eu o seco com a toalha felpuda. Ele retribui com desassossego. Colocamos o pijama e em disparada vamos ao quarto. Ele tira o pijama e pede que lhe faça uma massagem. Espalho creme por todo o corpo. Minhas mãos sentem cada pedaço daquele homem. Massageio as costas, as pernas, a barriga, os braços. É o momento em que nada é capaz de nos expulsar do quarto. Recoloco o pijama. Rolamos na cama feito dois pequenos animais domesticados. Vamos à borda das cobertas e voltamos. Nosso barco um dia naufragará. Por ora não há tempestade capaz de afundá-lo. Ele deita na minha barriga. Esfrega o nariz no meu. Faz bagunça nos meus cabelos. Tira os meus óculos. Beija-me com furor. Às vezes, exagera. É preciso medir com critério a distância dos corpos na cama. Acidentes podem acontecer. Somos dois homens desgovernados. Desligo a tevê. Ele se enrosca ainda mais em mim. Sinto seu braço em torno do meu pescoço. O ar da sua boca é quente e cheira a leite. Aos poucos, a noite nos atropela. O sono nos derruba. Ele cai primeiro. Desajeitado, sufoca-me contra a cabeceira. Ressona com a boca meio aberta. Vejo seus dentes. Estão crescendo. Logo, cairão alguns. Ele tem o corpo parecido com o meu. Seu cabelo está tomando forma, encorpando. Ele adora o pijama de leão. O seu rugido é forte. Ele é magro. Muito magro. Eu também. Somos dois homens magros que se amam. Quando dorme, levo-o ao berço e o cubro com cuidado. Quase sempre, dorme a noite toda.

Mas logo cedo me chama aos berros: “Papai, tira eu daqui”. Eu o tiro do berço e ouço mais uma ordem: “Vamos tomar café da manhã”. Levo-o no colo até a cozinha. Conversamos sobre vários assuntos. Ele me faz perguntas cujas respostas desconheço. Escancara minha ignorância. A sensação de não saber quase nada é boa. A casa acorda. A cidade desperta. O nosso mundo reinicia a próxima volta.

* Publicado no site Vida Breve (http://www.vidabreve.com)

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