6:22Lesma também cava buraco

Ilustração  de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

A lesma deixava um rastro pegajoso e brilhante no caminho iluminado pelo sol. Lenta, vagarosa, presa fácil. Surrupiava o punhado de sal da cozinha e temperava sem dó o monstro molenga da minha infância. Derretia, desintegrava-se. A mãe sempre achou um desperdício tanto sal para um bicho tão desprezível. Sem querer, descobria que excesso de sal faz mal à saúde. Sempre acreditei que a lesma fosse um caracol que fugira do casulo, que se livrara do fardo às costas. Cansada da couraça antiquada — um fusca de motor fundido —, despia-se sem pudores e largava seu gozo rastejante pela calçada. O caracol é um animal ambíguo: uns o consideram asqueroso; outros, charmoso e engraçado. O caracol é uma lesma que deu certo.

Há algum tempo, penso que a morte cheira a sopa sem sal. E talvez feita com cascas de caracol e lesma picada. São imagens confusas. No primeiro dia de fevereiro deste ano, rastejei pelas rampas do hospital Erasto Gaertner. Estava sozinho. É permitida a entrada de somente uma pessoa de cada vez na enfermaria. O homem da portaria sempre está de mau-humor. Ontem, último dia de janeiro, estive no cemitério. Meu primo levou cinco tiros. Dois no rosto. Entre os túmulos devem habitar muitas lesmas e caramujos. A morte tem data marcada em nossa família. No mesmo dia, há dez anos, minha irmã esqueceu-se de deixar o hospital. Preferiu o caminho do cemitério. Aos poucos, vamos tomando conta dos túmulos. A morte sempre foi excelente em projetos habitacionais. Agora, subo a rampa do hospital. Para trás, deixo o cheiro da sopa sem sal e um rastro gosmento na borracha do piso. Preciso chegar ao quarto 52B. Lá, minha mãe já respira por um buraco no pescoço.

A carta tem um número quase indecifrável: 22317342179. É do SUS (o Sistema Único de Saúde) para minha mãe. É a primeira carta que ela recebe na vida. Sem contar, é claro, os carnês das Pernambucanas, Casas Bahia, Riachuelo. O Ministério da Saúde está preocupado com a minha mãe, mesmo que ela já tenha morrido. Eu também. Um questionário deseja saber se o buraco no pescoço foi bem-feito. Se cavoucaram direito. Se usaram as pás com destreza. Se o acabamento não deixou riscos de infiltração. Leio com muita atenção. Aprender e gostar de ler nem sempre é uma grande vantagem. O Ministério da Saúde lembra que “o atendimento foi todo custeado pelo SUS, com recursos pagos pelos cidadãos e que devem ser utilizados com toda atenção e respeito. É um direito de todos os brasileiros”. A coisa parece ser bem importante. Até porque “a sua avaliação do serviço vai contribuir para melhorarmos a saúde no seu município e em todo o país”. Não posso perder a oportunidade. Basta preencher umas bolinhas cujas indicações trazem carinhas sorrindo ou tristes, dependendo da avaliação para o serviço prestado. Bolinha preenchida e estarei acabando com o rapto de crianças sadias em Alagoas, levadas à força a uma clínica para exames de sangue. Em seguida, as famílias recebem uma carta do Ministério da Saúde para que avaliem o tratamento contra um suposto surto de pneumonia. Vamos preencher os formulários: eu combato as quadrilhas no Nordeste; vocês me ajudam a aperfeiçoar a escavação de buracos em pescoços desnutridos aqui no Sul. Como dizia o slogan do governo anterior: “Brasil, um país de todos”. Acho que faltaram “os desesperados” a este slogan.

Antes de subir ao quarto, na recepção do hospital, a tevê na parede tentava me ajudar a decifrar o que acontecia no mundo. Um banco espanhol está à beira da falência. Dois funcionários da Petrobras morrem em acidente numa plataforma petrolífera no Rio de Janeiro. Deve ser muito triste ficar dias e dias na solidão do mar. E um dia trocar a solidão da vida pela solidão da morte. Não sei muito bem o que significa um banco espanhol falir. Mas deve ser bem complicado encontrar dois corpos sugados pelo mar enraivecido devido ao petróleo derramado. Esqueço tudo isso ao cruzar a porta de vidro e ser golpeado pelo aroma inexistente da sopa sem sal. Subo a rampa até chegar ao 52B.

Cavar um buraco no pescoço da mãe da gente leva o nome de traqueostomia. E custa ao SUS R$ 591,08. Não é um buraco barato. Um buraco em rodovia custa ainda mais. Quando tínhamos todos cerca de dez anos, um vizinho nos convenceu a ajudá-lo na obra de reforma da casa. Cavamos — eu, meu irmão e alguns amigos — durante o dia todo vários buracos no quintal. Ao fim do expediente, deu-nos uma nota de dinheiro incapaz de saciar nosso desejo por chicletes de hortelã embalados em figurinhas da Copa do Mundo. Nunca mais aparecemos para cavar aqueles buracos. Completamos nosso álbum de figurinhas com trabalhos mais bem remunerados. Vendemos chuchu em baldes, plantamos azaleias em pacotes plásticos, colhemos trigo com uma faca de cozinha. Valdir Perez e Paolo Rossi valiam o esforço.

No topo da rampa há um balcão povoado por jovens médicos. Os chamados residentes. Falam e sorriem o tempo todo. Não ter um buraco no pescoço sempre ajuda a sorrir com mais facilidade. Tenho certeza de que um dia estarei sob os cuidados de algum desses residentes. Quando passo por eles também sorrio. E torço para que aprendam tudo direitinho. Não me resta muito mais a fazer. Abro a porta e me jogo para dentro do quarto — queda livre no escuro. Não tenho a menor ideia do que encontrarei. Cinco camas, um banheiro e uma tevê disputam espaço com a morte.

Ela está retorcida na cama. Um galho velho calcinado. Krajcberg sentiria inveja da instalação que um câncer seguido de uma traqueostomia é capaz de construir. Hospitais são depósitos de belas obras de arte. Algumas bem bizarras, é verdade. Não a toco. Tenho receio de quebrá-la. Está dormindo. Ou morta, imagino. Nas camas ao lado, a situação é um pouco melhor. Uma senhora careca reclama da comida. Diz que nada tem gosto de nada. Penso: sopa sem sal, com pedaços finos de lesma. Outra tem um cano de plástico enfiado na barriga. Tenta disfarçar, mas a fragilidade do corpo a impede de esconder a vergonha que tanto a incomoda. A que está em melhor situação, na minha avaliação de daltônico, assiste a um programa da Globo. As tevês dos hospitais colaboram muito para a liderança da Globo sobre as demais emissoras.

Minha mãe acabara de sair do centro cirúrgico. Lá fizeram a traqueostomia de R$ 591,08. Parece que o buraco foi bem-feito. Ela não está morta. Por enquanto. Ressona sob o lençol puído. Lembra-me um feto gigante. Talvez de girafa. Deve ser bem complicado fazer traqueostomia em girafas. Em que altura do pescoço seria o buraco? Os ossos do quadril estão saltados. As pernas para fora do lençol deixam-me entrever o longo corte na sola do pé direito. Logo após meu nascimento, minha mãe pisou num prego enferrujado a caminho do paiol de milho. O tétano alastrou-se. No hospital, cortaram o pé em dois e durante um bom tempo esfregaram com uma escovinha fina. Minha mãe sempre nos contou esta história, relatou em detalhes a dor quase insuportável. Ela nem imaginava que uma cicatriz na sola do pé direito é apenas um detalhe para quem tem um buraco no pescoço.

Após a eternidade de alguns minutos, decido deixar o quarto 52B. Despeço-me das novas amigas da minha mãe. Peço para uma delas informar que estive ali. Ela sorri, balança a cabeça, conivente com o meu pavor. Rastejo novamente pela rampa. Deixo uma nódoa incolor pelo caminho. Passo pela cozinha. Novas porções de sopa de lesma sem sal estão sendo preparadas. Os residentes sorriem. Na carta, o Ministério da Saúde reforça que “após a internação, é importante seguir o tratamento e adotar, cada vez mais, hábitos saudáveis que vão melhorar a sua qualidade de vida”. Reduzir o sal da sopa sempre ajuda.

A carta 22317342179 segue ao lado do computador. Preciso respondê-la. Não posso deixar de cumprir minhas obrigações de cidadão. Pintarei as bolinhas cujas avaliações são “muito bom, bom, regular, ruim e muito ruim”. Gosto das carinhas sorrindo ao lado dos pequenos círculos. Mas elas parecem mentir para mim. No centro da carta, o número 136 é o telefone do Disque Saúde. Minha mãe lê muito mal e não pode falar ao telefone. Ou respondo esta carta ou telefono para o 136. Ainda não decidi. Ao lado do número, outro alerta: “sempre é hora de combater a dengue”.

É muito difícil acertar um mosquito em pleno voo com um punhado de sal. Será que lesma se alimenta de Aedes Aegypti?

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