7:16Elza e os jacarés

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira*

Desço a Silva Jardim. É noite de sexta-feira. O carro novo despeja um barulho quase imperceptível. Um ronco agônico ao meu lado me acompanha. Levo minha mãe ao hospital. Quantas viagens já fez até o Erasto Gaertner nestes últimos meses? Algo sempre se solta do corpo em decomposição. Agora, a sonda da barriga está vazando. Alguém precisa consertar o vazamento do velho edifício antes que seja interditado. Em breve, será implodido com nenhuma dinamite. O ruído estranho, abafado, esganiçado pedido de socorro, vem do buraco no pescoço, por onde ela respira. Não há nada a conversar. Gastamos poucas palavras durante a vida doméstica. Nunca fomos muito bons em conversas. Em nossas negociações, a palavra é uma moeda de pouco valor. Ligo o rádio na tentativa de amenizar a estranheza. Olho para o lado e não a reconheço. Em pouco tempo, a doença a transformou em outra mãe. É estranho ter duas mães durante a vida habitando o mesmo corpo. O rosto estampa uma cor estranha. O daltonismo às vezes me salva do pior. A boca ganhou um formato quase monstruoso. Um dos olhos não abre por completo. Parece um brinquedo de desmontar. Ao remontá-lo, a criança espantada não sabe juntá-lo. Minha mãe é um Frankenstein infantil.

Antes de subir ao palco do auditório, encontrei-a. Ela sorriu e mostrou-me os fios conectados ao corpo. “Meu coração bate quarenta e duas vezes por minuto. Está parando”. Só me restou desfiar consoladores lugares-comuns: “Que é isso, a senhora é forte. Vai viver muito”. Ela me encarou conivente com a mentira. No palco, ao agradecer a presença de todos, ao elogiar o trabalho desenvolvido em favor da literatura, ao comemorar a iniciativa, troco duas vezes o nome da responsável pelo evento — a senhora cujo coração bate apenas quarenta e duas vezes por minuto. Roza transforma-se em Elza na minha boca atrapalhada. Ela me olha aflita e desenha nos lábios: Roza. Envergonhado, sigo com as palavras apressadas. Acabo o brevíssimo discurso, aperto com carinho as mãos de Roza e saio para encontrar meus filhos. Transpiro muito e meu coração bate a muito mais de cem por minuto.

Acho que meus filhos me amam. Sempre fazem bagunça no meu corpo quando me encontram. No cinema, um jacaré em 3D (ou seria um crocodilo?) tenta abocanhar a nossa pipoca. “Tenho medo do jacaré, papai.” Sem desgrudar do suco de uva, meu filho identifica o inimigo na sala escura. Minha filha finge indiferença. Outback — Uma galera animal, dirigido por Kyungho Lee, é uma animação apenas razoável. Aos diálogos faltam ironia e graça. Ser previsível até mesmo para uma criança de cinco anos também me incomoda. Sou uma criança de quarenta anos.

Após o cinema, deixo-os em casa. Tenho de levar minha mãe ao hospital. A sonda despregou-se da carne molenga da barriga e vaza um líquido cremoso. É a primeira vez que a acompanho sozinho ao pronto-socorro. Sou um homem medroso. Minha mulher ainda pergunta se gostaria que ela fosse em meu lugar. Não digo nada e entro no carro novo. Meu pai gosta do carro preto, com ar-condicionado, vidros elétricos e direção hidráulica. Minha mãe não percebe nada. Tem dificuldade para colocar o cinto de segurança. Está agarrada à bolsa. O que carrega de tão valioso naquela bolsa comprada em alguma lojinha barata no centro de Curitiba? O motor produz um barulho imperceptível. Mas nem tudo é silêncio. Minha mãe está ao meu lado.

Na Silva Jardim, após alguns minutos, descubro por que fiz tanta questão de levá-la ao hospital. Hesitante, pergunto-lhe: “Como é o nome da mulher que fez o meu parto?”. A resposta arranca-me do lugar, joga-me de encontro ao volante, sacoleja-me o corpo magro e desengonçado. Quando estou em situações de perigo, imagino-me um pelicano manco dançando nas ondas em direção à praia. Com o dedo na traqueostomia, o nome sai fatiado: Elza. Não acredito em fantasmas, mas eles insistem em me fazer companhia.

Foram três dias e três noites comigo agarrado à escuridão de seu corpo. Lutava para não deixar aquele útero. Mas no dia 21 de janeiro de 1973, minha mãe conseguiu me expulsar. Caí direto nas mãos da parteira. Nas mãos de Elza, descubro após quase 40 anos. Por que somente agora pergunto? Em vão, tento prolongar a vida ao meu lado. “Será que ela está viva?” Minha mãe balança as mãos, desiste de tampar o buraco na garganta e apenas balança a cabeça, em sinal de que não faz a menor ideia. Que diferença faz se Elza está viva? Que diferença faz saber o nome da parteira que me deu à luz? Que diferença faz conversar com esta mãe que nunca encontrou muito sentido nas palavras? Que diferença faz ter um carro novo numa noite de sexta-feira?

Apenas sete pessoas esperam no plantão. Será rápido. Minha mãe retira da bolsa, praticamente vazia, a carteirinha amarela. Sua vida de doente está toda ali. Às vezes, a vida cabe numa bolsa qualquer. Senta-se ao meu lado e não olha para a TV ligada. Não consegue manter o pescoço muito tempo em direção à tela pregada na parede. Encosta o deformado rosto na mão e o derruba para a direita. Na novela, um homem barbudo fala e come ao mesmo tempo. É um pobre desajeitado. Acho tudo muito caricato. A interpretação do pobre nunca me convence nas novelas da Globo. Em pé, um homem com calça do exército, chapéu de palha e banguela conversa com uma enfermeira. Ele não é o doente da vez. Espera por algum parente. Quando começa mais um Globo Repórter sobre jacarés na Amazônia, uma jovem médica chama minha mãe. É uma moça bonita, lábios pintados e botas de canos exagerados até os joelhos. Depois do plantão, com certeza irá a uma festa. Ajudo a colocar minha mãe na cama. A médica me encara: “Pode esperar lá fora assistindo TV. É mais confortável”. Qualquer lugar é mais confortável do que aquele quarto apertado com várias pessoas agonizando nos catres apertados. Até mesmo um Globo Repórter sobre jacarés da Amazônia.

Apesar dos jacarés, tudo está calmo na recepção do hospital. Uma placa me manda sorrir: “você está sendo filmado”. Sorrio. Treze cadeiras de roda estão estacionadas num canto à espera de algum corpo incapaz. O desmatamento prejudicou muito o habitat dos jacarés. São quase 23 horas. Um frio começa a me incomodar. Estou de camiseta. Um cartaz alerta: “previna-se da gripe A”. Alguns cuidados são necessários. Acho que nada é dito sobre passar frio numa sexta-feira à noite num plantão para cancerosos. Relaxo e sorrio novamente quando encontro a placa do governo federal: “país rico é país sem pobreza”. Este slogan não faz o menor sentido. O anterior muito menos: “Brasil, um país de todos”. Acho que esse “todos” sempre deixou muita gente de fora.

Os jacarés já haviam desaparecido quando minha mãe surge pelo corredor. Está sozinha. A médica de lábios pintados deve ter outras preocupações. Vida de médico não é fácil. Recolho os braços da mãe — lembram-me as asas dos passarinhos que matei na infância — e seguimos para fora do hospital. Deixou-a na porta e corro até o estacionamento para buscar o carro novo. Não há trânsito. Em pouco tempo, minha mãe está em casa. Ela tem dificuldade para retirar o cinto de segurança. No trajeto, nenhuma palavra. Ajudo-a a deitar na improvisada cama na sala. Pergunto se está tudo bem. Ela balança a cabeça na vertical. Depois de velha, minha mãe começou a mentir com mais desfaçatez.

Ligo o carro. O ruído do motor é imperceptível. Amanhã é sábado. Contarei aos meus filhos o nome da minha parteira. Definitivamente, não gosto de jacarés.

*Publicado no site Vida Breve (http://www.vidabreve.com)

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Uma ideia sobre “Elza e os jacarés

  1. Fernanda

    Sentimentos não se traduzem em palavras. As palavras aprisionam. O silêncio é mágico, é o entendimento, o pacto, o pelicano. Grato pela suas palavras, vc tem o dom de transformar sentimentos em mágicas palavras.

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