por José Maria Correia
Taura, meu mestre de budismo e artes marciais, jamais aceitou que eu tivesse feito uma escolha existencial de ir viver na perspectiva do tempo passado.
“As melhores opções estão por vir e residem no futuro, pregava ele .”
-“Futuro, José Maria, futuro ”
Mal sabia que na maturidade eu já havia feito a escolha irreversível de mover-me por desambição.
Assim, também o mestre Taura acabou partindo e já está entre as minhas melhores lembranças.
Bem distante do futuro, das quimeras e dos cantos das sereias que já não me comovem.
Que posso fazer se trago dentro de mim o banzo da nostalgia dos ascentrais da alma lusitana?
Se em cada esquina fotografo na retina uma perda , uma ausência sentida.
Não é um lamento, mas um apego afetivo do muito que vivi intensamente.
Como nas palavras de Neruda, “para viver vivi”.
Dia desses, caminhando sem rumo, fui até a antiga sede do PMDB , o casarão da familia Calderari na rua Vicente Machado.
Subi as escadarias gastas de mármore branco e entrei na sala, outrora movimentada e cheia de vida, onde José Richa, então candidato ao governo, despachava e recebia os companheiros.
No gabinete ao lado, pleno de alegria, ficava Mauricio Fruet, também candidato e envolvido na organização dos comícios.
Em ambas, desta vez ouvi somente o silêncio.
Nada lembrava a explosão feérica de votos de 1982 que levou uma geração de jovens idealistas, que faziam oposição por vinte anos, a assumir o poder.
Subi mais um lance até o auditório onde lançamos o primeiro comício pelas “Diretas Já” e fui contemplar em total solidão o painel da reconquista da democracia que encomendei anos passados ao artista Arthur de Freitas .
Na parede lateral os retratos de Richa, Fruet , Oguido e Elias Abrahão.
Todos partiram muito cedo , muito antes do combinado.
Volto a 1982.
Trinta anos se passaram do mês de agosto, época de eleições.
Tres décadas.
Nada daquela época pode se comparar às milionárias campanhas eleitorais de hoje.
O dia dos candidatos começava na simplicidade do café da manhã, com a família reunida em casa.
Nada de hotéis ou eventos.
Richa, Arlete e os três meninos no apartamento da Sete de Setembro
Fruet, Ivete e os filhos na casa da Rua Chile.
Depois a campanha, Mauricio saía com a Brasília igual à dos Mamonas Assassinas; Richa com o Dodge Dart muitas vezes empurrado pelo Emilio Mauro ou pelo Nestor Baptista.
Ambos passavam no meu pequeno comitê, nada mais que um cubículo junto ao estacionamento do Rubens Ribas na rua Desembargador Westephalen.
Depois, buscar panfletos produzidos no mimeógrafo antigo da garagem do Mauricio na Rua Chile (tarefa da Ivete e das crianças), e íamos à luta. Naquela época, não havia espaço para desambição .
Era determinação total em busca do futuro.
Queríamos mudar o país! E não foi pouco o que fizemos como homens/multidões, com a redemocratização e a retomada do Estado de Direito.
O fim do arbítrio, das torturas, assassinatos, sequestros, cassações e exílios.
O Paraná respondeu com seus filhos ao chamado da nação brasileira.
A campanha não parava.
À noite eu chegava na casa da dona Luci Requião, na Vicente Machado, para apanhar a cola de araruta para os cartazes.
A Maristela ficava misturando e preparando a produto em um tambor aquecido com fogareiro – e dali eu partia para enfrentar a madrugada de colagens e pichações, que costumavam terminar em pancadaria na disputa dos postes. Eu e meu fiel auxiliar, o Gastão, velho companheiro que fui resgatar no Hospital Psiquiátrico Pinel, de onde surgiram outros voluntários.
Para enfrentar o clima de ameaças, prisões e violências em um país que ainda vivia sob o jugo da ditadura militar e seus tentáculos, os órgãos de repressão, tínhamos que ter uma boa dose de loucura cívica.
Faço este retrospecto diante dos escândalos atuais de mensalões, caso Cachoeira , Câmara Municipal e a Assembléia dos Diarios Secretos, para dizer que nem sempre foi assim.
Houve uma época em que o exercício da política era quase artesanal, sem artifícios, estúdios virtuais, cenários feitos por computadores e candidatos lendo textos diante das câmaras de televisão.
Era uma época de simplicidade onde os partidos tinham posições nítidas, desiguais e definidas – e não posturas assimétricas direcionadas por pesquisas como hoje ocorre.
Gente como Richa e Fruet nunca soube o que representava comprar um voto ou pagar um cabo eleitoral.
Campanha era feita por voluntários, amigos e correlegionários.
E por que não falar da austeridade de um adversário político como Ney Braga, que quando Prefeito de Curitiba dirigia seu Fusca oferecendo carona para quem encontrava no ponto do ônibus, como presenciei tantas vezes quando ia para o Colégio Estadual?
Tive o privilégio de ter convivido muito com cada um desses gigantes, três paradigmas da vida pública honrada.
À Ney, como governador, servi como Delegado de Carreira na planície da instituição e também divergindo, debatendo e reivindicando como Presidente de minha entidade de classe.
Sempre o respeitei, embora o desafiasse e dele tive consideração e fui até um pouco confidente como quando recém casado recebi conselhos conjugais.
Uma vez ele me disse: “Meu filho, não descuide do seu casamento. Leve sempre sua mulher ao cinema como eu faço com a Nice ”
Em outra ocasião, durante uma discussão áspera, apontou para a sua cadeira no gabinete de governador e afirmou paternalmente: “Esta poltrona de couro é má conselheira” referindo-se à ilusão que o poder proporciona.
Em relação aos inimigos e às traições dizia: “Perdoe, mas não esqueça”.
De Richa fui líder na Câmara de Vereadores e um de seus coordenadores de programa de governo.
Também aprendi muito. Ele tinha boas frases. Uma delas adotei como lema de vida.
Certa feita fui visitá-lo no Palácio Iguaçu, como fazia sempre. Perguntei ao chegar: “Então, Governador, como estão as coisas ?”
Ele estava despachando com o Chefe da Casa Civil, o professor Oto Bracarense, um dos meus gurus. Bastante à vontade, e com os pés sem os sapatos, como gostava de trabalhar, respondeu: “Veja Zé Maria, os professores estão em greve, a arrecadação do Estado caiu, temos incêndios e queimadas no Oeste e inundações em Rio Negro e União da Vitória”. E concluiu: “Mas apesar disso eu estou muito animado ”
Bem, se ele estava animado, eu fiquei encantado com a resposta e passei a usá-la sempre que me perguntam como vou indo. Nada de dizer “muito bem, obrigado”. Respondo: “Muito animado”.
Pode ser impressão minha, mas sinto que as pessoas se surpreendem e gostam. Muitos elogiam a resposta, que tornou-se espontânea com o hábito.
Quando fui vereador, enquanto muitos de meus colegas apresentaram dezenas de títulos de cidadãos honorários, eu fiz questão de homenagear somente duas pessoas , Dom Helder Câmara e José Richa.
Quando Dom Helder veio para Curitiba, recebemos ameaças e tentativas de boicote. A homenagem foi aprovada por apenas um voto de diferença: 16 a 15.
Houve pichações do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e panfletagem negativa, mas ele as enfrentou com uma serenidade e paz de quem já havia visto e passado de tudo neste mundo, até mesmo no Vaticano, que nunca o prestigiou como deveria.
Deu- me de presente um livro de sua autoria, O Deserto é Ferti, com uma dedicatória: “Amigo José Maria, precisamos fazer florescer o deserto”.
E o Mauricio Fruet ,essa doce criatura, quem poderá esquecê-lo ?
Teve uma carreira intensa, brilhante, participou de todos os movimentos libertários – desde as lutas pela anistia e a revogação da lei de segurança nacional, mas do que mais lembro é de sua atuação em Brasí lia na Câmara dos Deputados. Nacionalista, defensor da informática e do desenvolvimento, trouxe para Curitiba todos os expoentes da política brasileira que se opunham a ditadura.
Através de Mauricio pude conviver com intelectuais como Maria da Conceição Tavares, Severo Gomes, Franco Montoro, Cristina Tavares, Marcos Freire , Dr Ulysses Guimarães e tantos outros do Brasil e das Américas.
Na prefeitura de Curitiba, nomeado por Richa , Mauricio deu início à redemocratizaçào da cidade onde até então a Sanepar e a Copel eram proibidas de levar seus serviços de água e luz para as comunidades carentes que viviam como se estivessem na Idade Média.
Fruet rompeu com o ciclo autoritário que concentrava os recursos no centro da cidade e distribuiu os benefícios da urbanização para os mais necessitados e sub-representados e estabeleceu um clima de amizade e respeito com os servidores municipais que o recordam com saudades e estima.
Amizade era a marca de Fruet.
Fui candidato a Vice-Prefeito de Mauricio Fruet em 1988 e perdemos uma eleição manipulada onde nenhuma regra foi respeitada e, pela primeira vez, o poder econômico, conservador e rentista fez valer o peso do capital, comprando candidatos para que desistissem e se organizando para a retomada do espaço no Estado que haviam perdido em 1982 para os setores populares e que somente haveriam de recuperar em 1994.
Naquele período as noites eram de resistência, de lutas e movimentos na premissa do herói baiano Carlos Mariguella: “Todos os dias, pequenas ações. Sempre que possível, grandes ações ”
E a mais marcante foi o primeiro comício pelas eleições diretas, que realizamos na Praça Osório no histórico dia 12 de janeiro de 1984.
Demos o primeiro grande passo para a volta da democracia quando Richa, Ulysses, Lula, Teotônio Vilela, Fernando Henrique, Fruet, Brizola, Alvaro Dias, Tancredo, Mario Covas, Roberto Requião e tantos outros discursaram inflamando mais de sessenta mil pessoas.
Daquele palanque improvável saíram os presidentes que governaram o Brasil por 21 anos sem perseguições – e com independência.
O restante é conhecido e foi escrito pelos milhões de brasileiros que ocuparam o Vale do Anhangabaú, as praças da Sé e da Candelária até a Esplanada do Planalto – e das ruas e das plenárias não mais saíram até retomar o elementar direito do voto.
Esta é uma pequena parte da história dos últimos trinta anos. Um fragmento contado à vôo de pássaro e focada em três personagens que marcaram suas trajetórias por honradez, dignidade e espírito público.
Certamente os sacrifícios, as ausências de horários, de repouso e alimentação regular, as inquietações, as noites de insônias, ,as angústias das derrotas e os pesos das muitas vitórias e das macro-responsabilidades minaram suas saúdes e abreviaram suas vidas.
Mas neste agosto de incertezas e dúvidas fiz questão de deixar um testemunhal sobre um período de sombras e de luzes marcado pela grande coragem e espírito de sacrifício e de renúncia dos protagonistas. Período que, diante de comportamentos e atitudes tão retas ( sans peur e sans reproche ) que hoje parecem tão distantes, também pode ser chamado de a Época da Inocência.
Muito bom
Fiz parte desta época que deixou saudades, em que os políticos eram realmente homens de boa índole. Hoje votamos no menos pior e geralmente nos um enganamos…
Zé Maria, belas lembranças e palavras !!!
Parabéns !
Mariguella heroi ? Então o Bin Laden também é um heroi e o Fidel Castro então é o heroi dos herois .
Obrigado Zé Beto por nos proporcionar ler os excelentes textos do Dr. Zé Maria , verdadeiras aulas de sensibilidade com estilo e elegância , pedimos ao Zé Maria que continue a escrever e relate também outras histórias que viveu como o famoso protesto contra Stroessner no Palácio Iguaçú
1971 – Fernando Lira veio ao Paraná e acompanhou Maurício, mais Alencar e líderes da região, num roteiro que começava em Umuarama e terminava em Guaira, na peixaria do Cícero, lógico, na beira de uma das 7 das 40 Quedas mais bonitas que as do Iguaçu. Lira inventou de querer conhecer Salto del Guayrá, PY, onde como aqui – tempos de Médici, o pau corria frouxo, tempos de Stroesnner. Inventaram de emendar numa churrascaria. O dono, locutor, tinha sido “aluno” do Maurício tempos de rádio. Ficou doidim. Deu o micro pro Maurício que mandou ver las saudaciones a todos los hermanos paraguaios, mais ou menos isso, num portunhol regado a Drurys, acho.
Nem bem acabara la saudacione uma meia dúzia de jipes do exército invadem o estacionamento da churrascaria levantando nuvem de poeira era de terra o piso. Lira, Alencar y todos los otros danaram a suar frio pensando no caos diplomático que aprontaram. Desce um oficial do primeiro jipe, e marchando acompanhado da tropa armada se empertiga diante do grupo. Pensei thamos phodhidos. O comandante bate continência e declama: Em nombre del generalíssimo Stroessnner, la saudacione del pueblo paraguayo a todos los ilustres parlamentares brasileños – mais ou menos isso.
Sniff…sniff…Você “judeia” da gente, Zé Maria.
Quanto ao Zé Richa, tô esperando o juízo final prá ver o castigo que receberei pela mancada que dei na campanha que ele nem foi pro segundo turno. Tudo por causa de partidarismo. Não imaginava que os partidos iriam virar isso ai.
Última vez que estive com êle, na missa de Sétimo Dia do baita companheiro Caio Perondi (Dois Vizinhos), na igreja do Largo da Ordem. Lhe pedi perdão, ele passou a mão na minha cabeça, me puxou prá junto do peito – ou barriga. Piorou. Me fêz lembrar do meu finado pai.
É phodha, véio!
Zé Maria, belo relato, que embora em lados opostos tive o privilegio de vivenciar! Mas um ponto os adversários da época tinham em comum: ética!
Belo relato dos anos 80. Os jovens precisam saber que nem sempre fomos livres como hoje.
….VALE AS PALAVRAS ,SÁBIAS ,BEM REFLETIDAS ,POIS FORAM VIVIDAS….UMA ÉPOCA DE INOCÊNCIA PURA!!!
….HOJE É UM NEGÓCIO!!!!…FORAM-SE OS BONS HOMENS
PÚBLICOS…NÃO EXISTE O PODER SEM MUITA GRANA ,MAS MUITA GRANA…..
….PARABÉNS DR. JOSÉ MARIA DE PAULA CORREIA…..
…PN…..
Zé Maria, Parabéns pelo texto. Permita-me incluir em seu relato Jacinto Torres.
Zé Maria, vc é incrivel. No governo do pessuti vc comandava o nosso sindicato da BOIA ( restaurante do palacio Araucaria) como vc dizia o sorteio do bife. Lindo o que vc escreveu. Voce poderia nos proporcionar e escrever um LIVRO de todas as histórias que vc vivenciou. Vai ser um sucesso total. O Zé Richa, foi o nosso paizão pois viemos todos juntos no mesmo caminhão, pena que todos brigarão por caso do poder. Um abraço do seu sempre amigo Joao feio.