6:51A outra Zulma

Ilustração:de Ricardo Humberto

por Rogério Pereira

Zulma está preocupada com o fim do mundo. Ou, pelo menos, com o seu desastroso futuro. O impacto do crescimento populacional das cidades sobre as mudanças climáticas parece lhe tirar o sono. No artigo publicado em 29 de julho na Gazeta do Povo, cita um documento de título pomposo: Global Report on Human Settlements 2011: Cities and Climate Change. Zulma sabe inglês. Eu não sei. Minha mãe também não. Ela sabe apenas algumas palavras em italiano tosco — um dialeto da região de Bergamo, cultivado na lavoura, arrancado aos solavancos da boca dos avós. Entre minha família materna escorre o orgulho de que os ancestrais vieram da Itália, entre a divisa com França e Suíça. Ou coisa parecida. A fome em língua estrangeira não é menos ruidosa. Na infância, aprendi várias expressões em italiano rudimentar. Somente os palavrões permanecem comigo. Sou poliglota para ofender o mundo.

Minha mãe se chama Zulma. Não sei quem lhe deu este nome. Ela tem 67 anos. É um nome antigo. Talvez tenha sido o seu pai na tentativa de prever um futuro promissor à filha. Se foi ele, a intenção naufragou. De origem árabe, Zulma significa aquela que tem saúde. Ele (meu avô) se suicidou pendurado numa árvore. Sempre imagino o corpanzil do italiano balançando na solidão da corda. Minha mãe murcha em desespero corroída pelo câncer. É difícil esta coisa de tentar prever um futuro promissor aos filhos. Ainda mais quando se decide morrer no meio do caminho.

Zulma não é um nome bonito. Não chega a ser esdrúxulo, mas soa estranho. É comum escreverem o nome da minha mãe sem o L. Ela vira Zuma — aquele joguinho eletrônico, cujo competidor controla um sapo que deixa esferas coloridas numa trilha. Quem agrupar no mínimo três esferas da mesma cor soma pontos. Nunca joguei Zuma. Nem pretendo. Sou daltônico.

Mesmo com o modismo de batizar os filhos com nomes “antigos” — Antônia, Sofia e Flora estão em alta —, Zulma está com os dias contados. É um dos últimos dinossauros a comer folhas caídas na grama. Pasta ao lado de Mabelino, seu irmão. Difícil alguém olhar para a filhinha recém-chegada ao mundo e sorrir: “vai se chamar Zulma”. Qual seria o apelido na escolinha? Minha mãe nunca teve apelido. Também nunca foi à escolinha. Uma de suas irmãs, às vezes, a chama de Zu. Mas desconfio de que seja como ela (minha tia) gostaria de ser chamada. Seu nome é Zunir.

A outra Zulma alerta que “as secas, que algumas regiões já enfrentavam, também tiveram um aumento de duração, ocorrendo associadas às ondas de calor em várias regiões do mundo, nas quais a população não se encontra adaptada a altas temperaturas, gerando muitos óbitos, principalmente entre a população mais idosa”. Temo que minha mãe corra sérios riscos. Acho que ela está nesta faixa de “população mais idosa”. Além disso, está doente. Velhos doentes sofrem muito.

A outra Zulma nem desconfia de que a minha mãe seja uma das culpadas por este desequilíbrio no mundo. É fácil de entender. Um dia, a Zulma catou os três filhos, jogou-os na boleia de um velho caminhão e abandonou a roça. Chegou à cidade grande no final da década de 70. Portanto, colaborou pelo “contínuo crescimento da população urbana”. Em Curitiba, ganhou netos. E se a morte deixar, arrisca ver algum bisneto pular em seu colo desnutrido.

Minha mãe também desrespeitou a natureza e as regras urbanas. Na semana passada, após mais de trinta anos, descobri que o terreno de sua casa é área de fundo de vale. Ou seja, de preservação ambiental. Teria de respeitar quinze metros nos fundos sem construção alguma. Por lá, as casas foram se amontoando. Da última vez que contei, havia sete construídas (todas de madeira) no terreno estreito e comprido. Aluísio Azevedo sentiria inveja do nosso cortiço. A outra Zulma passaria uma sonora reprimenda: “a sustentabilidade espacial é um dos grandes desafios da cidade contemporânea, uma vez que o zoneamento do uso da ocupação do solo urbano impacta diretamente todas as atividades da cidade. Nos país em desenvolvimento, como o Brasil, a falta de planejamento urbano adequado e fiscalização efetiva geram, como consequência, as ocupações irregulares de risco — em várzeas de rios e morros, que resultam em enchentes e desmoronamentos, causando tragédias que poderiam ser evitadas”. Se o cortiço descer a ribanceira, a culpada será a Zulma. Espero que os fiscais da secretaria do Meio Ambiente não leiam esta crônica. Nosso cortiço estará seriamente ameaçado.

Apesar de tanta desgraça no mundo, a outra Zulma mantém certo otimismo. Termina seu artigo afirmando que “o futuro pode ser bem melhor se compreendermos a urgência em restabelecer a convivência solidária nas cidades”. Li o texto para minha mãe, apenas pela curiosidade de ter sido escrito por outra Zulma. Ao fim, ela apenas me olhou. Tenho certeza de que não entendeu absolutamente nada. Ficou me olhando com seus olhos quase mortos. Arrastou os pés pela cozinha, tentando equilibrar a cabeça sobre o corpo cadavérico. Depois do câncer, minha mãe lembra um palito de fósforos que não passou no teste de qualidade: a cabeça ganhou excesso de pólvora e ficou muito grande. O palito não aguentará por muito tempo tanto peso. Lá embaixo está o fundo de vale, beirando os casebres.

Quando minha mãe morrer, poderia enterrá-la ali. Economizaria com cemitério. Mas acho que não estaria sendo solidário e, tampouco, colaborando com a tal sustentabilidade.

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