7:47O tamborzinho de Deus

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira

Ao Luís, que me apresentou “O grande luto”

Saul, Brian e Adam são astrônomos. Eu tenho medo de altura. Eles descobriram que o universo acabará em gelo. Antes, imaginava-se que o nosso fim seria em fogo — algo mais terrível, chocante, um verdadeiro Armagedon de furiosas labaredas sobre todos nós. Mas ao que parece, teremos um ocaso menos glamoroso: uma infinita planície cósmica gelada, uma inóspita Antártida. Para mim, pouco importa. Vai acabar de qualquer maneira. Durante anos, os três cientistas norte-americanos estudaram a expansão do universo. Valeu a pena ficar de olhos grudados na escuridão que nos envolve. Ganharam o Prêmio Nobel de Física no ano passado e embolsaram um milhão e meio de dólares. Encarar o fim do mundo com dinheiro no bolso não faz muita diferença. A coisa é simples de explicar e complicada de entender: o universo continua se expandindo para algures. Ninguém sabe muito bem para onde. Fico pensando no que existe depois do universo. Se ele se expande, é porque há espaço. O que existe onde o universo ainda não chegou? Deus? O demônio? Ou um tamborzinho de plástico espancado por uma criança?

Minha filha tem uma obsessão: encontrar uma estrela cadente. Acredita que o desejo de ter um cachorro rasgando o sofá da apertada sala se realizará. Basta avistar o risco no céu e o schnauzer depositará pelos e patas em nosso piso de mármore falsificado. Na viagem de avião a Manaus, o desafio era encontrar uma estrela cadente. Tocá-la com as mãos. Quando acordou, estava em plena floresta. Na volta, não viu nenhuma estrela. No passeio pelo rio Negro não viu nenhum boto. Também não encontrou nenhum índio. Minha filha não diz, mas tenho certeza de que a viagem a Manaus compõe seu ainda pequeno diário de frustrações. Pensei em lhe dizer que uma estrela cadente não é nada em comparação à expansão desenfreada do universo. Mas ela entende menos de astronomia do que eu.

Lembro exatamente do momento em que recebi a notícia que me persegue. É um zunido constante, quase uma maldição. Diante da televisão, admirava a falta de jeito do meu filho com o seu precioso instrumento musical: um tamborzinho de plástico, cujas batidas produzem um som estridente, desagradável, mas empolgante aos ouvidos do pequeno músico de três anos. Quanto mais alto, melhor. Tenho pena e raiva da película plástica que absorve a ira do baterista prematuro. Era noite de terça-feira, 4 de outubro de 2011. Eu assisto ao Jornal Nacional; meu filho espanca o inocente tambor. Na sacada, os mosquitos e outros invasores noturnos começam a festa em torno da lâmpada. Fátima Bernardes anuncia a reportagem sobre o Prêmio Nobel de Física. Na tela, Saul, Brian e Adam sorriem. Estão mais ricos, mais famosos. Mas não mais bonitos. Os três têm cara de cientista. Uma animação tenta explicar para os leigos a tal expansão do universo que se acelera e vai transformar tudo numa imensa geleira.

Brian diz sobre o Nobel: “Tenho a mesma sensação de quando os meus filhos nasceram. Estou muito animado e surpreso”. Concordo com ele. Sempre achei que filhos e expansão do universo têm muito em comum. Meu filho sova com mais apetite o indefeso tambor. Sigo com interesse a reportagem. Os invasores noturnos infestam a sacada. Acredita-se que a aceleração da expansão do universo seja impulsionada pela energia negra — um dos grandes mistérios para os astrônomos. E para o resto da humanidade.

Efraïm também é astrônomo. Mas ele não existe. É uma criação do português António Vieira, no conto O grande luto. Solitário em seu observatório, resolve perscrutar o negrume da noite que se aproxima a cada fim de tarde. Ao mirar o poderoso telescópio — espécie de réptil gigantesco couraçado de metal —, Efraïm encontra o inimaginável. Um corpo flutua pelo universo. É Deus. Simples e assustador: Deus morrera durante o Big Bang, a explosão inicial, a gênese disso tudo, o começo do caos, das incertezas e das buscas. Um corpo de 14 bilhões de anos a boiar num universo em franca expansão. Ou seja, na ficção de Vieira somos uma nave à deriva, sem comandante, sem rumo, sem a certeza de nada. Nossas crenças sempre foram uma mentira; o guia protetor não passa de um defunto secular perdido entre estrelas. E o meu filho de três anos, que não se preocupa com nada disso, solapa sem dó o seu tamborzinho.

Na escada rolante, a descoberta. O meu inimigo pegou-me pelos calcanhares e atirou-me ao ar feito um pernilongo desnutrido. Próximo de desembarcar no piso superior do shopping, cometi o grave erro de olhar para baixo. O McDonald’s tremeu diante dos meus olhos. As pernas bambearam. Perdi o equilíbrio. Saltei de encontro a um homem gordo e vermelho. Desses que o excesso de peso constrói pequenos seios pontiagudos. Atrapalhado, disse-lhe que era daltônico. Sem entender nada, ignorou o meu pavor de altura e se desvencilhou com facilidade do meu improvisado abraço. Além de daltônico, sou acrofóbico. Meu maior pesadelo é uma viagem em um balão multicolorido em direção a um arco-íris. Pavor de altura não é hereditário. Minha filha quer se encontrar com uma estrela cadente. Meu filho se pendura na sacada quando cansa do seu tamborzinho.

A acrofobia talvez explique o meu apego à escuridão. O gosto por descobrir o que há por trás das noites sem estrela. Sinto-me protegido na sacada ausente de luz diurna. Mas desde 4 de outubro de 2011, tudo mudou. O pavor tem piorado muito. Não paro de pensar na expansão do universo. Na gigantesca altura (ou distância) que só aumenta. Na mão que estica tudo ao infinito. Como a massa de pão alisada pelo rolo de madeira. Na infância, ajudava minha mãe a fazer pão em casa. Gostava de polvilhar a mesa de fórmica com farinha de trigo. Em seguida, minha mãe sovava bem a massa e a depositava sobre a mesa. Pegava o rolo e começava a esticar para os lados, com precisão, métrica e paciência. Era um trabalho artesanal. Em algum tempo, a massa estava pronta para ganhar os contornos de pão. O forno à lenha completava a tarefa. Hoje, minha mãe não faz mais pão. E eu polvilho apenas uma mesa imaginária.

Bem que Deus poderia estar brincando de padeiro fanfarrão a esticar o universo para os lados que bem entendesse. Mas se estiver morto boiando há 14 bilhões de anos? Melhor não pensar. Tenho coisas mais urgentes com que me preocupar: matricular meu filho numa escola de música; capturar uma estrela cadente para minha filha e comprar uma casinha de cachorro,

*Publicado no site Vida Breve (http://www.vidabreve.com)

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