6:29Na beira do rio não havia Brastemp

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

Tenho uma cicatriz na perna direita. E preciso consertar a máquina de lavar roupas. O motor enguiçou, começou a patear — um cavalo velho relinchando na área de serviço. A Brastemp Advantech Wash está conosco há quase dez anos. Chegou bem antes dos filhos. É da família. Agora, vaza pelas beiradas e despeja um filete de água pelo piso. Além de manchar as roupas. Mais lambuza do que limpa. Dela, as camisas saem remelentas, nódoas de um motor cansado, sujo, desajeitado. O técnico garante que é coisa simples: basta trocar uma peça, ajustar outras e vida nova por pelo menos mais sete anos. Desnecessário comprar outra. “Hoje em dia, as pessoas não ficam mais com as suas máquinas antigas. Querem perseguir a modernidade.” Como não desejo perseguir nenhuma modernidade, sigo o conselho de Airton (o técnico), desembolso quatrocentos reais e resolvo a questão. Minha cicatriz na perna — um precário bumerangue na altura do joelho — vai completar trinta e cinco anos. Não sei por quanto tempo ainda me acompanhará.

Não podíamos nos aproximar do poço no fundo de casa. A família corria o risco de encolher. E não seria nada fácil resgatar o corpo de uma criança da escuridão cilíndrica. A roldana era difícil de girar. O balde cheio ia direto para a cozinha: saciava a sede, cozinhava o feijão, arrancava a sujeira do corpo em canecas. Não havia luz elétrica, nem água encanada. Pato Branco era a primeira parada logo depois do fim do mundo. Da roça direto para a pequena cidade no sudoeste do Paraná. Meu pai construiu um prédio. Era um dos pedreiros. O prédio ficou torto. Não sei se ainda está de pé. Mas durante muito tempo carreguei o fracasso de meu pai. Ele tentava aprender a nova profissão. Suas mãos trocaram a lavoura de feijão, o açude de carpas, a enxada de lâmina cega, pelo chapisco, pela brita, pelo tijolo assentado no muque, pelo desnível do prédio no horizonte. Em casa, a mãe nos arrastava pela rua poeirenta em direção ao rio. Com a trouxa de roupas na cabeça, guiava os três filhos. Os cachorros e suas ninhadas também perambulavam por ali. Minha mãe tinha trinta e quatro anos. Seis anos a menos do que tenho hoje. Sempre tivemos a mesma idade.

Airton sabe o que faz. Em menos de três minutos, o diagnóstico: “Tem de refazer a mecânica. Nunca fez isso antes? Olha, teve sorte, mais um pouco e queimava o motor”. Fala com a segurança dos especialistas. Pensei em lhe perguntar se já vira um prédio torto. Não vale a Torre de Pisa. Mas a pergunta soaria deslocada, sem muito sentido. Também era necessário trocar a tampa do recipiente onde se coloca o sabão em pó. Ordenou que maneirasse no uso do amaciante. “Deixa a roupa macia e cheirosa, mas é gorduroso e mancha. Tem que usar com moderação.”

A mãe nos deixava no gramado à beira do rio. Arriava a saia entre as pernas e sentava nas pedras. A água corria nela, se enroscava na roupa e despejava a espuma branca ladeira abaixo. Nós apenas corríamos. O pai entortava o prédio, a mãe limpava a roupa e nós não tínhamos a menor ideia de onde estávamos. Da roça, lembro quase nada. Do pai a esvaziar o açude, os peixes lutando para fugir de nossas mãos famintas. A esquálida figura paterna abandonando a mata com as jabuticabas a escapar dos dedos. Nasci aos cinco anos em Pato Branco. O resto é apenas lembrança que arranco aos pedaços de meus pais.

Airton se preparava para ir embora quando a minha curiosidade o alcançou. Pergunto sobre os melhores modelos de máquinas que lavam e secam. Ele foi categórico: “Esses modelos resolvem o problema de espaço, mas pifam com muita frequência. As fábricas produzem milhares de máquinas, mas não colocam no mercado as peças de reparo. Tem equipamento que fica quatro meses esperando a reposição de peça. É o tal problema da modernidade”, disparou contra o meu assombro.

Na beira do rio, não tínhamos dono. Éramos três animais soltos. A mãe não nos vigiava. A roupa tinha de perder a poeira. Naquele dia, eu estraguei tudo. Deslizei pela grama e minha perna encontrou um galho de árvore. Meu grito arrancou a mãe da água — peixe esguio lambuzado de sabão. Aos trinta e quatro anos ainda é possível carregar o filho de cinco no colo. Meus irmãos, logo atrás. A pequena matilha assustada regressava a casa. Minha perna sangrava. Um pedaço dela havia descolado de mim, balançava feito as linguiças que a avó deixava secando sobre o fogão à lenha. Um naco suculento de carne branca. Eu, mais uma vez, sujava a roupa que minha mãe tentava limpar. No hospital, os pontos desenharam o bumerangue na minha perna.

Airton é um sábio. Convenceu-me a ficar com a máquina, a trocar o display e a pintar os descascados, que podem enferrujar a carcaça da velha Brastemp. E também a comprar uma secadora de teto — uma das especialidades da empresa em que ele trabalha. Tudo resolvido. Adeus manchas, adeus filete de água no piso, adeus ronco assustador, adeus descartável modernidade.

Eu teria de ficar em repouso absoluto. Nada de traquinagens pelas ruas poeirentas. Sempre contrariei os médicos. Quando pulei o muro de casa, os pontos arrebentaram. O sangue escorreu pelo bumerangue em direção à canela. No colo da mãe, voltei ao hospital. Meu pai tentava desentortar o prédio. Novos pontos, novas recomendações. Enfim, sosseguei. O bumerangue poderia aumentar e romper as fronteiras do meu joelho. Dias depois, corríamos todos pelo gramado ao lado do rio. Minha mãe raspava com fúria a roupa nas pedras.

Na casa da minha mãe tem uma máquina de lavar roupas. Não sei se é Brastemp. Fica num canto ao lado da cozinha. Minha mãe não lava mais roupas. Agora, ela só se preocupa com o câncer e suas cicatrizes. Tem duas bem fundas. Dois buracos abertos o tempo todo. Respira pela garganta; alimenta-se pela barriga. Minha mãe é um quebra-cabeça estropiado — o nariz no pescoço, a boca na barriga. Os braços perderam a musculatura, os ossos tentam atravessar a pele flácida, a cabeça não sustenta nenhuma trouxa. Quando meu filho a visita, ela senta e pede para que ele se aproxime. Ele tem três anos. Então, o colocamos no colo da avó. Com dificuldade, ela acaricia o neto assustado. Meu filho ainda não tem nenhuma cicatriz no corpo.

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