6:45O PRÍNCIPE CIGANO

por José Maria Correia

Já desisti de lutar contra a insônia.

Aceitei depois de muito tempo meu destino de notívago e as horas perdidas da madrugada.

Assim é que curto resignado o silêncio misterioso da noite, observado apenas por meu gato branco, tão insone quanto eu.

Ficamos os dois numa meditação introspectiva e solidária até que em altas horas o sono nos surpreenda na sala vazia, nos acalente e nos dê sossego.

Há certa inquietação em não dormir.

Um sentimento de incompletude.

Um vazio e um reclamo da alma aflita que pede trégua, mas não encontra.

Nessas horas lembro-me de meu pai e seu ronco sagrado.

Uma vez voamos juntos para o Marrocos. Eu, ansioso, andando pelo avião e atento a cada ruído das turbinas. passei a noite toda em claro como se estivesse pilotando.

Ele, um privilegiado, assim que sentou na poltrona adormeceu como que por encantamento, e só foi despertar em Casablanca, no aeroporto Mohamed V, em meio ao deserto e como se tivesse dormido apenas quinze minutos.

Conheço pessoas que só dormem bem ouvindo o ruído do mar e das ondas quebrando na areia. Sou um desses.

Em minha casa de praia meu metabolismo se altera e sou despertado somente quando o sol nasce e ouço o ruído dos motores das canoas dos pescadores e o canto dos passarinhos anunciando a aurora.

A natureza age a meu favor entre o oceano e a montanha.

Se ao menos eu aproveitasse essas longas horas tediosas para contar a estranha história do Príncipe Cigano…

Um domador de circo que apareceu do nada em minha Academia de Judô e Karatê, lá pelos idos de 1970, quando eu ainda era um atleta.

A Academia reunia mestres de todas as artes marciais do oriente.

A exceção foi o Príncipe. Era um lutador de Savate, o combate francês que surgiu nas ruas entre os diversos clãs de excluídos.

Os japoneses o respeitavam, mas de certa forma discriminavam uma modalidade de luta julgada menos nobre.

Não pelo Príncipe, ele chamava-se Iury Stancovich e dizia descender do monge Rasputin, da corte do Czar russo Nicolau II.

Segundo ele, Rasputin havia tido um filho com uma curandeira cigana que preparava poções para a hemofilia usadas na cura do filho do Czar – e esse filho era o pai do Príncipe Cigano, título de nobreza herdado do avô materno, não do monge.

De Rasputin herdara somente os poderes místicos que utilizava em seus shows de ilusionismo.

Sim, o Príncipe, além de domador de ursos e atirador de facas, era também ilusionista e músico.

Na história que contava tinha vindo da Romênia com os pais fugindo da perseguição que Hitler movia em toda a Europa contra os judeus e os ciganos.

Atravessaram a pé os Bálcãs e embarcaram em Istambul em um navio cargueiro do armador grego Aristóteles Onassis, desembarcando na Argentina.

Os pais eram artistas de circo e o Príncipe foi criado embaixo de uma lona e em carroças ciganas onde aprendeu todas as artes que o transformaram em uma atração internacional.

Havia um número em que um casal de ursos enormes e amestrados dançava flamenco e valsas ao som do violino que Iury tocava magnificamente.

Os ursos pareciam dóceis, mas em uma passagem , um deles, o macho, simulava rebelar-se em uma luta com o Príncipe, mas com carinho dosava a força das pancadas que desferia com a pata, pois se utilizasse toda a potência o monstro podia arrrancar por inteiro e de um golpe só a cabeça de um ser humano.

Cheguei a ver o número dos ursos no circo Thianny aqui mesmo em Curitiba.

Mas o espetáculo principal ele só apresentava nos grandes palcos dos teatros da Europa.

Era uma cena em que, vestido apenas com uma tanga de seda e um lenço cigano na cabeça, ele mergulhava em uma enorme caixa de vidro; em seguida uma máquina de fazer gelo trazida ao palco congelava toda a água e ele ficava preso em uma enorme barra de gelo.

Era impressionante e vi somente as fotografias. O Príncipe ficava totalmente emparedado sem poder respirar em uma temperatura que podia matar por hipotermia em alguns segundos.

O tempo passava, o corpo ficava azul, a plateia se inquietava, mulheres desmaiavam até que cerca de dez minutos depois o assistente, um negro africano gigantesco, arrebentava a barra a marretadas e o Príncipe,depois de alguns instantes, era reanimado por médicos até com choques elétricos. Voltando a respirar, levantava ressuscitado para receber os aplausos delirantes.

Esse número misterioso nem o Grande Houdini, o mestre dos mestres, conseguiu realizar na sua época. Ele ficava também imerso na água por grande tempo- mas nunca congelado.

O Príncipe uma vez me contou que quando era criança havia acostumado a mergulhar nos rios gelados do inverno russo e que usava uma poção desenvolvida pela sua mãe, também curandeira, que reduzia os batimentos cardíacos para sobreviver congelado – além de óleo de baleia que esfregava na pele.

De fato era um homem incomum, um remanescente de genocídios e perseguições seculares que não tinha noção exata do que fosse uma pátria, mas era dotado de um instinto de sobrevivência superior a de qualquer espécie da natureza.

Tinha também a sensibilidade do músico e era convidado para tocar em restaurantes de luxo em dueto com outro errante e apátrida amigo, o pianista Lázaro.

O Príncipe era imprevisível. Gostava de estar sempre na Academia entretendo as crianças, ensinando truques contando suas histórias mundiais.

Desaparecia por meses para fazer seus shows e cumprir turnês no exterior . Depois ressurgia da mesma forma como tinha partido, sem aviso e sem compromisso com nada e com ninguém.

Descobri meio por acaso em uma conversa com o Lázaro que o Príncipe tinha sido expulso da tribo quando rompeu o compromisso de casamento que os pais haviam firmado com uma menina de outra família quando ele tinha nove anos de idade.

Romper esse compromisso para os ciganos é caso de morte – e o Príncipe havia se apaixonado por uma bailarina uruguaia, não cigana , uma gadgé da boate Stardust que trabalhara como sua assistente no palco e depois o abandonara fugindo com um gigolô de Buenos Aires.

Para não morrer na ponta de uma faca foi que o Príncipe deixou a tribo fugiu para o Paraguai e depois voltou para Curitiba quando o circo já havia deixado a cidade e os ciganos levantado acampamento.

Um dia nos convidou para visitar o Passeio Público. Para nossa surpresa parou em frente a jaula de um casal de ursos e foi imediatamente reconhecido e saudado por urros e sacolejões na s grades.

O Príncipe tirou o violino do estojo e começou a tocar uma valsa clássica do vienense Strauss. Os ursos hesitaram um pouco, mas assim que a memória aflorou começaram a dançar como faziam no circo antes de serem vendidos como imprestáveis. Eram dois antigos parceiros de espetáculo.

Naquela tarde cinza de inverno, junto com outros colegas de Academia, vi que o Príncipe não só tocava o violino, mas também chorava apiedado com o destino dos Ursos enjaulados em um espaço mínimo.

Dias depois, levados por um amigo da Academia, o vereador Edgar Dantas Pimentel, estávamos no gabinete do prefeito pedindo a remoção dos ursos bailarinos para um espaço maior e mais digno. Fomos prontamente atendidos, o que fez com que o Príncipe abandonasse seu plano já iniciado de alugar uma caminhonete para nunca mais devolver e sumir no mundo com os ursos para algum acampamento – para meu alívio.

Depois, com o passar do tempo, deixei a Academia para os mestres japoneses Makoto e Taura e fui ser Delegado. Não soube mais do Príncipe.

Anos mais, talvez uns vinte e cinco, levei minha pequena filha Isadora para ver um circo no Tarumã, acho que era o do Orlando Orfei, não tenho certeza.

Não imaginava que naquela noite o Príncipe surgiria no picadeiro com seu violino e um novo casal de ursos para dançar valsa, flamenco e dessa vez também um tango de Astor Piazzola, com arranjo do maestro Lázaro.

Eu e Isadora ficamos encantados – e junto com o público acompanhávamos a música e a dança dos ursos com palmas e olas na plateia. Era muito divertido ver os ursos em duas patas acompanhando o Príncipe em uma refinada coreografia por toda a extensão do picadeiro.

O Príncipe não parecia ter envelhecido, talvez por efeito da maquiagem. Na aparência, e com a indumentária de lenços brancos e vermelhos na testa, na cintura e no pescoço, lembrava o grande astro do cinema Rodolfo Valentino, ou o Johnny Depp nos dias atuais.

Terminado o espetáculo fomos até a coxia onde o Príncipe distribuía autógrafos e posava com os ursos. Ele abraçou comovido e nos deu um cartaz assinado que até hoje guardo como uma relíquia.

Foi a última vez que eu o vi. Antes da despedida levou-me até o seu trailer e contou que havia voltado para a tribo onde foi finalmente aceito após pagar um dote de trinta moedas de libra de ouro para a família da noiva abandonada na infância e que já estava casada com outro cigano. Eram todas as suas economias, mas não queria morrer desonrado e fora dos ritos sagrados de sua ascendência e de sua crença.

Depois voltei a outros circos, mas nunca encontrei o Príncipe e nem dele ouvi falar. Soube que quando um cigano morre queimam todos seus objetos e apagam sua memória dessa existência para que nada o prenda a essa encarnação e possa seguir adiante, como é da natureza nômade surgida na Índia.

Nós, latinos, não somos assim. Nos apegamos às memórias, às lembranças e aos sentimentos dos entes queridos. Cada vez que vejo uma lona de circo em alguma cidade me detenho, paro, vou olhar os cartazes e procuro por um som conhecido de violino, mesmo que seja distante, doído, como a juventude perdida que também ficou no passado, mas que não esqueço jamais.

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