6:22Um dia comum

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

A Cristiane, que me ampara na queda

Quarta-feira, 18 de julho, 9h30
O homem manca da perna esquerda. É gordo e muito branco. Domina o assunto com maestria inesperada. Diante dele, sinto-me mais ignorante. Quando termino qualquer breve frase, ele destila uma sabedoria sólida sobre a dependência química, os truques dos usuários, as artimanhas dos traficantes, as fugas possíveis. Enfim, um conhecedor. Seus exemplos de casos flutuam pela claustrofóbica sala. Estou protegido. Agora, tudo vai certo, penso com entusiasmo juvenil. Minha mulher também parece ter resgatado alguma esperança. Somos dois meninos no parque domingo à tarde admirados com o tamanho do algodão doce. O telefone não para de tocar. Muitos querem falar com ele. O orgulho é visível. Não me incomoda nada. “Eu vou resolver” é uma frase quase banal a explodir em seu rosto arredondado. Diante do nosso desespero aquela confiança toda é Jesus Cristo ressuscitado. Oferece-nos café. Garante que é muito bom. O café está frio e ruim. Não tem importância. Nada tem importância diante da possibilidade de salvação.

Em poucos minutos, resolve tudo: psiquiatra a ser consultada, autorização para internação, clínica escolhida. Basta confiar. “Não há nada caro para Deus” é outra de suas expressões preferidas. Não sabe que Deus e o poeta são dois meninos e dormem na face das pedras. Também faz analogia entre o camelo e o usuário de drogas. Diz que o camelo atravessa o deserto sem tomar água porque a armazena nas corcovas. Tenho vontade de desmenti-lo. Corcova de camelo só tem gordura. Mas prefiro não contrariá-lo, mesmo sem entender o que um dos representantes dos ungulados artiodátilos tem a ver com maconha, cocaína e crack. Após o camelo, uma moça magra e de fala tranquila está diante de nós. Ela é a salvação. Jesus Cristo, às vezes, também usa saia. Se ele não quiser ir por bem, vai por mal. Basta arranjar uma equipe de remoção forçada. Imobilização, algema e sedação: um trio perfeito contra nossas fraquezas. Descemos pela escada para driblar o frio que açoita Curitiba há alguns dias. Diante da porta de vidro, descubro que o prédio fora inaugurado em março de 1979. Mesmo ano em que chegamos a Curitiba. A cidade que nos acolheu, agora nos sepulta a todos sem qualquer cerimônia. Ligo o carro. Preciso chegar logo à casa da minha mãe.

Quarta-feira, 18 de julho, 11h45
Bato com firmeza na porta do quarto. Mas a voz sai estropiada: “Abra. Sou eu”. Sonolento, o homem de 20 anos e cabelos desgovernados estende-me a mão num gesto beirando a indiferença. Digo-lhe para que coloque uma roupa mais adequada ao frio. Vamos consultar um médico. Nunca digo a palavra psiquiatra. Sem discutir, ele aceita. Sem se despedir, olha para a a avó — minha mãe. A cena é cruel. O rosto dela está deformado, muito mais deformado. É quase uma aberração na sala de jantar. O olho esquerdo está sendo encurralado pelo inchaço da face. É metade uma japonesa mal desenhada, metade qualquer outra coisa. Um dia, foi filha de italianos. Do rosto sumiu toda a simetria possível; boneca de massinha, que aos poucos perde a consistência e o interesse da criança. Abana a mão direita em nossa direção. Saímos pela porta em busca de algo que seja barato para Deus.

Quarta-feira, 18 de julho, 12h30
Chegamos a minha casa. O almoço está na mesa. Levo-o ao meu quarto e explico o que considero uma vida normal. Mesmo sem saber exatamente o significado daquela frase num início de tarde fria. Ele segue calado. Nenhuma palavra. Nunca acreditou nas palavras. Não aprendeu a manuseá-las. Para ele, são apenas clarinetes para que o mundo não caia numa entediante quietude. Na mesa, arroz, feijão, couve, frango, salada, suco e meu filho barulhento. Almoçamos em silêncio. Deus deve estar nos observando. Espero.

Quarta-feira, 18 de julho, 13h15
Saímos de casa. No trajeto, apenas o rádio do carro fala conosco.

Quarta-feira, 18 de julho, 14h30
Estamos pontualmente na clínica. Somos um encaixe no meio da tarde entre um exame e outro para a renovação de carteira de motorista. A ficção teima em me perseguir. A cada minuto entra um novo motorista na sala. A rapidez do teste me espanta. Quando chega a nossa vez, o frio é intenso. Por uma fresta na janela o vento gelado castiga minhas costas. Eu e minha mulher estamos sentados no estreito sofá. Ele está diante da psiquiatra — uma senhora que lembra a minha avó. Usa muita roupa. Dizem que os mais velhos sentem muito frio. Então, sou um dinossauro esquecido no mundo. Numa folha de papel, a psiquiatra anota as poucas palavras que ele consegue construir. A mãe morreu há dez anos; o pai nunca deu as caras; os três cachorros de estimação foram atropelados. Nunca gostei de animais. “Muitas perdas”, sentencia a doutora. E faz desenhos ora azuis, ora vermelhos. Não consigo distinguir as cores.

Aos poucos, a língua dele perde a timidez. Frases de quase quatro palavras saem pela boca e me pegam de surpresa. Descubro segredos. Péssimos segredos. Aos poucos, sua proteção cede, a armadura derrete no frio. Ele veste uma calça que era minha, uma blusa que era minha, uma camiseta que era minha. A jaqueta não era minha. Minhas roupas lhe caem muito bem. Eu poderia ainda estar naquelas roupas. Mas elas não me pertencem mais. “Passe para o nosso lado” é a frase mais repetida na sala. Ele reluta. Não sabe de que lado está; não sabe em que lugar está; não sabe onde fica a Terra; e também não lhe contaram que Plutão não é mais um planeta. A psiquiatra preenche várias receitas. E uma guia solicitando internamento urgente. Saímos. Outra leva de motoristas está à espera na sala em frente. O trânsito brasileiro é muito violento. Vamos à farmácia.

Quarta-feira, 18 de julho, 17h25
O silêncio no carro é quase uma tempestade. Somos três derrotados. Na farmácia, o mundo começa outra vez a nos ironizar. Não há todos os remédios prescritos. Atravessamos a rua e vamos à concorrente. Surpresa: não podem vender tal medicamento porque o farmacêutico está de folga. Não há quem assine a receita. Num misto de raiva e deboche, esbravejo: “É o mesmo que um açougue sem carne”. Logo me arrependo. Ninguém é responsável pelo meu azar. E, além disso, a frase é péssima. Uma comparação ridícula.

De volta à outra farmácia, o balconista diz que encontrou duas das injeções receitadas. Problema resolvido, penso. Com um sorriso infeliz, ele nos informa que tem o medicamento, mas falta a seringa. Sugere-me atravessar a rua para comprá-la. Encho minha corcova e cruzo o Saara. A mesma atendente do açougue está diante de mim. Envergonhado, peço uma seringa. Cadê o farmacêutico?, penso em perguntar. Mas acho melhor não. Sou, quase sempre, um cansado escrivão Bartlebly. Balanço a corcova e refaço o caminho de volta. Imagino que se as duas farmácias se unissem, seriam um grande império. Uma tem o remédio; a outra, a seringa. Faltariam apenas as nádegas dispostas à ferroada.

Quarta-feira, 18 de julho, 18h15
De volta à casa da minha mãe. Antes de fechar o portão, ligar o carro e partir, digo-lhe: “Você tem duas opções: ir por bem ou por mal. Pense nisso”. Ele teria a noite toda para pensar. Baixa a cabeça e entra em casa. Quieto, como sempre.

Quarta-feira, 18 de julho, 19h35
Estou em casa. Ligo o chuveiro. O banho remove algo. Na cozinha, encontro meus filhos. Fazem algazarra, abraçam-me. Encho vários copos de água. Engulo um atrás do outro. Minhas corcovas transbordam. Deixo tudo pelo caminho: filhos, esposa, brinquedos, livros. Arrasto-me até o quarto, escancaro as cobertas e me afundo na cama. Amanhã, preciso atravessar o Saara e tomar uma decisão.

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