6:41A atmosfera inconfundível das emoções

por Ivan Schmidt

Um dos mais importantes escritores do século XX, William Faulkner (1898-1962), morto há 50 anos, inovador que escrevia tanto por prazer quanto por dinheiro, deixou marcas distintas na história da moderna literatura esculpidas em histórias insólitas que iluminam as sombras da natureza humana. A ideia é de Winston Manrique Sabogal e está na abertura de seu artigo na edição de 10 desse mês do El País de Madri.

Faulkner morreu a 6 de julho de 1962, com a idade de 64 anos, depois de criar e imortalizar um universo calculadamente caótico refletido num nome labiríntico: Yoknapatawpha. Ou seja, um território fictício inspirado no condado de Lafayette (Mississipi), no sul dos Estados Unidos. Sabogal imagina que o escritor testemunhou uma época de derrocada e abandono, na qual o tempo tem vida própria a fim de que o ficcionista o mostre não somente oxidado e lento, mas também com um movimento de elétron.

Nesse cenário transcorre a maioria de suas histórias inovadoras, tanto na forma quanto no conteúdo, fazendo de Faulkner o autor a quem mais devem os escritores da segunda metade do século XX, de todas as partes do mundo, mas especialmente na América Latina. Da relação lembrada pelo crítico espanhol constam nomes insignes como os de Alejo Carpentier, Juan Rulfo, Gabriel Garcia Márquez, Mario Vargas Llosa, Juan Carlos Onetti e Guilhermo Cabrera Infante. Eles são unânimes em reconhecer terem sido influenciados por obras como O som e a fúria, Enquanto agonizo, Santuário, Luz em agosto, Absalão, Absalão!, Palmeiras selvagens e outras.

Segundo Sabogal, histórias que se movem em zigue-zague e penetram nas áreas obscuras das emoções, dos sentimentos, da razão e dos instintos do ser humano, num emaranhado perfeito em que tempo, espaço e ação estão concebidos apenas para esse mundo e não para outro.

Numa forma de homenagear o olhar poliédrico de Faulkner, que recebeu o Premio Nobel em 1949, Sabogal ouviu seis escritores espanhóis num exercício contemporâneo de decifrar a riqueza do que denomina “universo em expansão que se presta a inúmeras interpretações”. Ele principia com Ana Maria Matute, para quem o autor de Santuário foi o escritor que melhor soube imbricar uma atmosfera especial com ódios e amores familiares, sentimentos que contaminam tudo ao redor. “Descreve como ninguém o lado escuro do ser humano, o inquietante que pode haver nele”, diz ela, valendo-se de linguagem “inconfundível por sua força, como torrente que parece não acabar”.

Para a escritora, Faulkner exerce sobre seus leitores um tipo de encantamento ao misturar mistério e realidade sem chegar a ser fantasioso, passando por ações aparentemente vulgares que, aos poucos, vão se revelando. Luz de agosto, a obra preferida de Ana Maria Matute mostra isso claramente.

Ana Maria Moix destacou em Faulkner a “força do estilo sobre o enredo e o controle absoluto que cria um ambiente e uma atmosfera na qual tudo flui e se encaixa”. Outra visão objetiva sobre a expressão literária do sulista brota das observações feitas por Marcos Giralt Torrente sobre personagens “desvalidos, solitários, criminosos, inocentes, marginais, corruptos”. Para entender mais profundamente essas reações, Giralt sugere imaginar por um momento “que Deus existe e conhece o destino de todas as criaturas”. Os personagens de Faulker estão de igual maneira predestinados, pois “seu passado e o grupo social a que pertencem ditam seu futuro”.

A mulher aparece como criatura chave no mundo literário de Faulkner, segundo o também escritor Luis Landero. Ela é uma sombra que, sem querer, sem utilizar o poder da sedução, atrai mortalmente o macho, submetendo-o às leis cegas da natureza. Landero lembrou, ainda, que na trama faulkneriana o homem tenta, em vão, fugir da mulher, porém “acaba sucumbindo a seu implacável canto de sereia”.

Admitindo uma relação especial e grande influência de William Faulkner sobre sua produção literária, Juan Gabriel Vásquez também concorda que sua ficção foi moldada pelo norte-americano “sendo essa a maneira mais proveitosa em que pude ler Faulkner”.

Já para Javier Marías, festejado escritor espanhol da atualidade, a extraordinária força de Faulkner está no estilo, que é aparentado a Proust e Henry James. Se há alguma diferença essencial, essa está nos longos parágrafos que parecem surgir aos borbotões sem a menor preocupação com a sintaxe. O próprio Faulkner dizia: “Se boto tanta coisa num só parágrafo é porque não sei se vou estar vivo para escrever o próximo”.

PS.– Como não cheguei a ler sequer parca referência aos 50 anos da morte de William Faulkner nos cadernos de cultura da chamada grande imprensa, tenho a impressão que esse blog é um dos raros espaços a fazer tal concessão ao extraordinário autor. Mesmo com a ajuda de El País, um dos jornais mundiais que mais valoriza a cultura. Falei e disse.

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6 ideias sobre “A atmosfera inconfundível das emoções

  1. Bitte

    Ei, Schmitaço:
    Monitorando o universo literário, como sempre.
    Lembrei daquele episódio entre nossos amigos, com um deles cozido, trancado dentro da casa, e o outro grita: “Por Faulkner, abra esta porta!”
    E o cara abriu.
    Até parece roteiro do próprio.

  2. walter schmidt

    Grande Ivan. Parabéns pela garimpagem e pelo belo texto sobre Faulkner. O jornal El País, que considero o melhor do mundo, tem páginas diárias sobre a boa cultura universal e, melhor ainda, aos sábados publica um suplemento imperdível de nome Babelia. Nossos jornais, coitados, nem sabem mais o que é cultura. Só estão preocupados em valorizar a cultura do consumismo!

  3. Célio Heitor Guimarães

    É por esta e outras demonstrações de talento que o Ivan não é convidado para compor a equipe de articulistas dos jornalzões impressos. É bom demais! Mas está muito bem aninhado aqui no latifúndio do nosso ZB.

  4. Jodicley Schinemann

    Meste Ivan continua vc combatendo o bom combate,só o fato de terçar armas na linha do gde arquiteto faz toda a diferença e vale uma vida,a sua ,retilínea coerente,saúde e paz gde irmão

  5. Ivan Schmidt

    Olá amigos do coração! Obrigadíssimo pelas generosas referências sobre esse humilde escriba, cujo ativo de leituras remonta aos últimos 40 anos, sem dó nem piedade. As fotos que o Zebeto colocou antecedendo o texto, com certeza, valorizaram a colaboração. Mas, tenho uma penitência a cumprir: o título correto de um dos mais belos romances de Faulkner é “Luz em agosto” e não “Luz de agosto” como escrevi. A preposição se justifica plenamente porque se trata de um parto e, não da luminescência outonal em algumas partes do hemisfério norte.

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