6:41Apenas uma alergia

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira

A morte teima em nos aproximar. Um imprevisto espalha os visitantes pelo pátio do cemitério. Ao descer do carro, encontro um dos meus primos — irmão do morto. A mão sem forças causa-me desconforto no cumprimento. “Tivemos de antecipar o enterro.” E não diz mais nada. O sol acendia pequenas labaredas sobre os túmulos. Iluminava com intensidade nossa insignificância. Abracei-o e lhe disse palavras óbvias. Somos previsíveis na morte. Aos poucos, os parentes começam a surgir. Tios e primos zanzam ao meu redor. O boi doente quando pasta sozinho tem a companhia das moscas. A maioria parece ressuscitar um passado que nunca acaba. Das brincadeiras na rua de há 30 anos. Estávamos todos ali, estranhos, calados e sem saber muito bem por quê. Tentativa de provar que viemos de algum lugar. O silêncio e a indiferença logo desfazem a aglomeração. Cada um toma o rumo de casa. O morto está enterrado. Dever cumprido. Meu pai vem em minha direção. Nos pés, chinelos.

— Não foi trabalhar?

— Fui.

— De chinelos?

— Estou com o pé machucado. Uma alergia. Não consigo calçar tênis. Dói.

Caminha de maneira trôpega. A vermelhidão entre os dedos parece realmente incomodar. Paramos diante da sala onde minutos antes parte da família chorava a perda inesperada. Eu, mais uma vez, chegara atrasado. Sem dizer nada, ele retoma a direção dos túmulos. Olha-me como um cão a aguardar o derradeiro afago do dono. Acompanho-o sem questionar. Caminhamos lentamente — ele, manco; eu, a observar as lápides malcuidadas. Contornamos as vielas estreitas sem a clemência do sol. Ao dobrar à direita, chegaremos ao túmulo da minha irmã, agarrada à parede de tijolos ordinários há dez anos.

Na laje de placas encardidas — um bizarro conjunto habitacional — as idades dos mortos desistem de entender o sentido de alguma coisa. Ela está aprisionada na pequena gaveta. Imagino como estará. Em que se transformara. Não consigo lembrar com que roupa a enterraram. No centro do quadrado, o nome e as datas 1974-2002. A foto oval está desbotada. Logo, será apenas uma mancha. Em seguida, a fotografia também deixará de existir. Restará tão somente o bronze das palavras. Desde sua morte, é a primeira vez que retorno ao cemitério.

— Precisamos colocar um vidro para proteger o túmulo da sua irmã.

A frase padece de sentido. Proteger do quê? Deixo a pergunta engasgada ao notar o buquê de flores de plástico a enfeitar seu o túmulo, o G-607.

— Eu trouxe — diz o pai, ao notar meu interesse pelas flores retorcidas, mas indestrutíveis, pelo sol.

Tudo não passa de uma grande ironia. Nós, que atravessamos parte da vida entre flores, samambaias, avencas e uma selva de plantas, recebemos no túmulo a eternidade de um buquê de plástico. Desnecessário comentar com ele. Não somos muito bons para explicar ironias. Na extremidade oposta, homens trabalham para aumentar a capacidade mortuária do cemitério. Quantas pessoas já morreram? Quantos a terra mastiga a carne ou esfacela os ossos?

Quando ouço “seu tio está enterrado ali”, ele já arrasta os pés alguns passos a minha frente. Sigo-o. Ele caminha com dificuldade. Sua indumentária lembra um personagem deslocado da roça para a cidade. Um homem que talvez nunca descubra qual foi o seu lugar no mundo. “Meu pai lavrava com charrua e cavalo. Os ombros redondos como velas pandos entre os varais e o sulco. Bastava um estalo de língua e os cavalos iam forcejando. Um conhecedor. Colocava a travessa e ajustava a relha de aço agudo e vivo. Rolavam sem quebrar os torrões de terra. Na borda do campo, a um tirão imprevisto de rédeas, a junta suarenta virava e voltava para o terreno. Ele estreitava um olho a fitar a lavra, traçando o sulco exatamente. Eu tropeçava nas pegadas das botas, caía às vezes no céspede luzida; às vezes ele levava-me nas costas descendo e subindo ao ritmo da lida. Eu queria crescer e lavrar, fechar um olho, firmar os braços. Tudo o que fiz foi seguir sem parar pela fazenda à sombra de seus passos. Um estorvo, falante, falseando, caindo sempre. Mas agora é meu pai que vive tropeçando atrás de mim, e não vai embora.”*

Ele me aponta com entusiasmo a lápide do tio morto há pouco tempo. Tudo está em ordem. O nome ao lado da data 1950-2011, o bronze brilha, não há flores. “Ele está enterrado ali.” E segue em direção ao burburinho metálico logo à frente. A morte recente ainda carece de acabamento, de contornos definitivos pelas mãos dos pedreiros que assentam os últimos tijolos, espalham o concreto sem qualquer preocupação estética.

Tomo o caminho contrário ao do túmulo recém-herdado. Meu pai entende que seu filho é um homem ocupado com outras banalidades. E me segue. Caminhamos pelos vãos; escorrego os olhos por todas as lápides possíveis; vejo as datas, calculo os anos de vida de cada morto. Sempre faço isso nos cemitérios. Ele anda com mais dificuldade. As tiras do chinelo raspam na vermelhidão dos dedos. Poderia simplesmente deixá-lo para trás. De maneira quase imperceptível, reduzo cada vez mais o ritmo dos passos. Seguimos lado a lado até a saída do cemitério, rumo ao anoitecer no início da tarde ensolarada.

* Transcrição na íntegra do poema Seguidor, do irlandês Seamus Heaney (Poemas, Companhia das Letras, 1998, tradução de José Antônio Arantes).

Publicado no site Vida Breve (http://www.vidabreve.com)

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