11:33A segunda morte de Vlado

por Roberto Salomão

A divulgação pelo Arquivo Nacional de 5 mil fotos do período ditatorial, antes inacessíveis, mostra que a Lei de Acesso à Informação está em plena vigência, mesmo com as inevitáveis resistências à sua implementação. Juntamente com a Comissão Nacional da Verdade, a Lei de Acesso à Informação inaugura um novo período na relação entre o poder público e os cidadãos. Não há mais segredos, e quem tentar mantê-los estará cometendo um crime.

Entre as fotos divulgadas, estão algumas de Vladimir Herzog, no necrotério do DOI-CODI do II Exército. As imagens escancaram a suprema infâmia praticada contra um homem por seus semelhantes, embora o termo “semelhantes”, no caso, seja passível de mil questionamentos.

De todas as vítimas dos abjetos torturadores e seus mandantes do regime militar, Vlado é a que mais me toca. Ele era professor na minha escola, a ECA-USP, embora eu não o tivesse conhecido. Participei dos protestos contra seu bárbaro assassinato, como presidente do Centro Acadêmico.

Há, no entanto, aspectos específicos no assassinato de Vlado. Se toda tortura é hedionda, ela se torna ainda mais horrível quando incorpora o elemento da cilada. Chamado a depor no II Exército, Vlado lá se apresentou voluntariamente. E de lá nunca mais saiu com vida.

Penso também na foto fabricada pelos torturadores, e que se tornou a foto oficial durante décadas. A fraude não consegue esconder a realidade, e não me refiro aos detalhes técnicos: Vlado está entregue, Vlado é a imagem da extrema sujeição de um homem entregue a uma matilha de depravados.

As fotos agora tornado públicas aprofundam essa percepção. De um lado, a sanha maldita dos torturadores, de outro um homem completamente indefeso, vítima que se tornou um símbolo.

Mas… era isso que ele queria? Era isso que sua família queria? Seus filhos estão felizes com as novos fotos agora estampadas?

Quase todos os militantes torturados que conheci tinham, e têm, um grande pudor de exibir suas chagas. A tortura não é uma bandeira, embora sempre haverá os que usem essa condição como um passaporte para a eternidade. Imagino que a presidente Dilma tenha os mesmos escrúpulos.

O acesso a todas as informações por parte de todos os cidadãos é um direito absoluto. Vlado, porém, não merecia esta segunda morte.

*Roberto Salomão é jornalista e um dos coordenadores do Fórum Paranaense pelo Resgate da Verdade, Memória e Justiça

Compartilhe

Uma ideia sobre “A segunda morte de Vlado

  1. Ivan Schmidt

    Concordo plenamente com Roberto Salomão. A memória de Vlado e o pesar de seus familiares e amigos foram novamente ultrajados pela divulgação das fotos. Aquela do cadáver despido é de uma violência inaudita e jamais deveria ser exposta. Os brasileiros que estavam vivos naquele período sabem muito bem o que aconteceu com as vítimas do sistema. A lúcida observação de Roberto é que Vlado se apresentou ao quartel voluntariamente e nada tinha a temer. Homem experimentado, no entanto, jamais imaginou estar caminhando para a própria morte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.