7:14A nova Tríplice Aliança

por Célio Heitor Guimarães

Não pretendia me imiscuir na questão Lugo. Afinal, é um assunto de caráter interno da República paraguaia, soberana e independente, que deve ser tratado pelos paraguaios, só por eles, maiores de idade e no uso de suas faculdades mentais. No entanto, o Brasil andou se metendo no acontecimento, fermentando-o além da conta. Arredou o Paraguai do Mercosul, pressionou o Uruguai a concordar com o expurgo e valeu-se da oportunidade para fazer o que sempre quis: convocar a Venezuela do companheiro Chávez para integrar a patota. Aí, o assunto passou a ser nosso também.

A Constituição do Paraguai prevê a destituição pelo Legislativo do presidente que se mostrar incompetente politicamente ou que agir de modo lesivo aos interesses nacionais. O ex-bispo Fernando Lugo – aquele que, enquanto ainda vestia (ou desvestia) a batina, deu cumprimento pessoal ao mandamento bíblico do “crescei e multiplicai-vos”, espalhando um punhado de filhos pelo latifúndio guarani – parece ter preenchido os requisitos para tanto. E, por isso, foi destituído da presidência. Em um processo relâmpago, mas plenamente adequado à legislação local. O vice-presidente assumiu o cargo. Dentro da mais absoluta civilidade, sem maiores protestos, sem confrontos e sem derramamento de sangue. Lugo recebeu a derrota de modo honrado. Mas quando se pensava que a vida retomaria a normalidade no vizinho país, eis que a doutora Dilma, do Brasil, arregimenta os seus colegas da Argentina e do Uruguai para alardear o descontentamento do trio com a sucessão paraguaia. Coadjuvados pela Venezuela de Chávez e pela Bolívia de Evo Morales, com o ímpeto de guardiões da América do Sul, dão um chega-prá-lá no Paraguai, suspendendo-o não apenas do Mercosul como também de uma ectoplasmática Unasul.

O analista Frieddmann Wendpap, da nossa Gazeta, talvez tenha matado a charada. Os discursos irados de Brasil, Argentina, Venezuela e Equador representam apenas “o medão que alguns chefes de Estado sentem de passar por situação semelhante à de Lugo”. E assim, por instinto de sobrevivência, fazem vistas grossas à autodeterminação do povo paraguaio. É o que o colunista compara à tosa de porco: “muito barulho e pouco pelo”.

Já outro jornalista e escritor, o paraguaio Chiqui Avalos, que combateu a ditadura Stroessner, trabalhou pela eleição de Lugo e edita o newsletter Prensa Confidencial, de grande prestígio em seu país, fez um desabafo (A Guarânia do Engano) que está correndo o mundo e do qual merecem ser reproduzidos alguns trechos referentes ao Brasil:

“Como num verso célebre de meu inesquecível amigo Vinícius de Moraes, ‘de repente, não mais que de repente’, alguns governos latino-americanos  redescobrem o velho e sofrido Paraguai e resolvem salvar uma democracia que teria sido ferida de morte com a queda de seu presidente. Começa aí um engano, uma sucessão de enganos, mentiras e desilusões, em proporção e intensidade que bem servem a que se componha uma melodiosa guarânia, mas de gosto extremamente duvidoso.

“Sucedem-se fatos bizarros na vida das nações em pleno século XXI. Uma leva de chanceleres, saídos da espetaculosa e improdutiva Rio+20, desembarca de outra leva de imponentes jatos oficiais no início da madrugada de um incomum inverno, e – quem sabe estimulados pela baixa temperatura – se comportam com a mesma frieza com que a Tríplice Alian*) dizimou centenas de milhares de guaranis numa guerra que arrasou a mais desenvolvida potência industrial da América Latina.

“Surpresos? Pois, sim, não é para menos. Éramos ricos, muito ricos, industrializados, avançados, educados, cultos, europeizados, amantes das artes, dos livros, das óperas, do desenvolvimento. Nossos antepassados brilharam na Sorbonne e assinaram tratados acadêmicos, descobertas científicas ou apurados ensaios literários. A menção de nossa origem não provocava o deboche ou ironia tão costumeiros nos dias tristes de hoje, mas profundas admiração e curiosidade dos que acompanhavam nossa trajetória como nação vencedora. Não ficamos célebres como contrabandistas ou traficantes, mas como povo empreendedor e progressista. A organização de nossa sociedade, a intensa vida cultural, o progresso econômico irrefreável, a bela arquitetura de nossas cidades, a invulgar formação cultural de nossa elite, a dignidade com que viviam nossos irmãos mais pobres (sem miséria ou fome) impressionavam e merecem o registro histórico. A rainha Vitória, que não destinou ao resto do mundo a mesma sabedoria com que governou e marcaria para sempre a história do Reino Unido, armou três mercenários e eles dizimaram a potência que, com sua farta e boa produção e espírito desbravador, tomava o mercado da antiga potência colonial aqui, do lado de baixo do Equador. Brasil, Argentina e Uruguai, como soldados da Confederação, nos arrasaram. Nossos campos foram adubados pelos corpos de nossos irmãos em decomposição, decapitados à ponta de sabre e com requintes de sadismo. O Conde D’Eu, marido de quem libertaria os negros e entraria para a história, comandava pessoal e airosamente o massacre. Os historiadores, essa gente bisbilhoteira e necessária, registraram seu apurado esmero e indisfarçável prazer. O nefasto delegado Sérgio Fleury teve um precursor com quase um século de antecedência…

“Não compreendemos a [atual] posição do Brasil. Ou não queremos compreender, tanto é o bem que lhe queremos. Nos arrasou como sicário da Rainha Vitória e nós lhe perdoamos e juntos construímos o colosso de Itaipu. O tratamos bem e ele defende a continuidade de uma das piores fases de nossa história, em nome do quê? Nega-nos o direito à autodeterminação, mas se esquece do papelão ridículo que fez em defesa de um cretino como Zelaya, um  corrupto ligado a grupos somozistas de extermínio e que era tão esquerdista como Stroessner e democrático como Pinochet.

“Foi deplorável o papel do chanceler Patriota (que não se perca pelo nome), saracoteando pelas ruas de Assunção em desabalada carreira, indo aos partidos Liberal e Colorado pressionar em favor de um presidente que caia. Adentrando o Parlamento ao lado do chanceler de Hugo Chávez, o Sr. Maduro, para ameaçar em benefício de um presidente que o país rejeitava. Indo ao vice-presidente Federico Franco ameaçar-lhe, com imensa desfaçatez, desconhecendo seu papel constitucional e o fato de que ninguém renunciaria a nada apenas por uma ameaça calhorda da Unasul (que não é nada) e outra ameaça não menos calhorda do Mercosul (que não é nada mais que uma ficção). O Barão do Rio Branco arrancou seus bigodes cofiados no túmulo profanado pelo Itamaraty de hoje. O que quer o governo Dilma? Passar pelo mesmo vexame de Lula na paupérrima Honduras? Se afirmativo, já fica sabendo que passará. Nós temos imensa disposição de continuar uma parceria que se relevou positiva e decente para ambos os países. Mas não temos da austera presidente o mesmo terror-medo-pânico que lhe devotam seus auxiliares e ministros. Cara feia não faz história, apenas corrói biografias. Dilma chamou seu embaixador em Assunção e Cristina fez o mesmo. As radicais matronas só não sabiam que: o embaixador brasileiro é um ausente total, vivendo mais tempo em Pindorama do que por aqui. Recorda o ex- embaixador Orlando Carbonar, que foi pego de surpresa em fevereiro de 1989 pelo movimento que derrubou o general Stroessner. Até meus filhos, crianças na época, sabiam que o golpe se avizinhava e que estouraria a qualquer momento, menos o embaixador brasileiro, que descansava no carnaval de Curitiba, sua cidade natal. Voltou às pressas, num jatinho da FAB, para embarcar Stroessner rumo ao Brasil. E a Argentina… Bem, a Argentina não tem embaixador no Paraguai faz alguns meses… Ocupadíssima, Dona Cristina não nomeou seu substituto. País de necrófilos, chamou um fantasma até a Casa Rosada para consultas.

“O Paraguai fez o que tinha que fazer. Seguirá adiante, como seguem adiante as nações testadas e curtidas pelas crises que retemperam e reforçam os povos. O religioso que não honrou seus votos de castidade e pobreza e traiu sua igreja, foi por ela rejeitado. O presidente que não honrou nossos votos e nos traiu, foi por nós deposto. Deposto por incapaz, por mentiroso, por ineficiente. Mas, principalmente, por que traiu as esperanças de um país e um povo que precisaram dele e nele confiaram e ele os traiu a todos.”

Em vez de ficar fazendo beicinho ou ditando cátedra aos vizinhos, Brasil, Argentina e Uruguai deveriam, isto sim, pedir perdão ao Paraguai pelo enorme mal que causaram e vêm causando ao povo paraguaio desde os idos de 1864.

(*) A Tríplice Aliança foi a união entre Brasil, Argentina e Uruguai para lutar contra o Paraguai, de 1864 a 1870, na Guerra do Paraguai.

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