7:39“Seu” Joca Chifrudo

por José Maria Correia

O ano era 1974, época marcada pela ditadura Médici, o Brasil havia perdido a Copa do Mundo e eu havia sido aprovado em primeiro lugar no concurso para Delegado de Polícia e estava me achando “o cara”.

Pronto para assumir o meu primeiro cargo, comprei um terno na melhor loja da cidade, o Magazin Avenida, bem ali no calçadão da Rua das Flores.

Caprichei no traje, coloquei o anel de formatura que a mãe havia comprado na Joalheria Kopp, mandei polir o Opala amarelo-ovo de talas largas no Posto Heller, e rumei todo empolgado para Campo Largo.

Chegando todo engravatado no antigo prédio da Delegacia, fui recebido por um senhor muito distinto e compenetrado a quem entreguei orgulhoso minha portaria original de designação assinada pelo Diretor da Policia Civil, o promotor Antonio Lopes de Noronha.

Ele a colocou em um arquivo, depois de apor burocraticamente um carimbo desnecessário, como de costume, e levou-me para conhecer a repartição.

Andamos pelas salas de paredes rachadas e esmaecidas, as janelas com alguns vidros quebrados, até chegarmos ao meu novo gabinete, passando antes pela ala da carceragem.

Sentei-me na cadeira do titular atrás da pequena mesa e iniciamos uma conversa, indaguei:

“O senhor é o escrivão?”

“Não”, respondeu o cavalheiro.

“Então é agente de segurança?”

“Também não”, disse ele.

Eu, já intrigado, perguntei:

“Mas qual o seu cargo na Delegacia?”

“Não tenho cargo”, respondeu constrangido, “Sou o preso de confiança e cuido do prédio.”

Pensei: “Caraca , mas que mico, eu todo emperiquitado me apresentando solenemente para um preso.”

Logo eu que estava me achando a versão tupiniquim do Eliot Ness, líder do lendário grupo dos Intocáveis, que havia prendido Al Capone.

Desconsolado e frustrado com o anti-clímax e a recepção humilhante, ordenei:

“Recolha-se! Lugar de preso é na cela.”

Ele, um senhor de mais de sessenta anos, desmanchou-se em justificativas.

“Doutor Delegado, eu nunca entrei no xadrez. Fui condenado por homicídio passional. Minha mulher me traía com a cidade inteira enquanto eu dava duro no açougue . Sou um homem honesto e arrependido de meu gesto impensado. Estou aqui há seis anos, faço churrascos para o Juiz e o Promotor e ainda cuido da Delegacia.”

Eu, como todo novato, estava apegado ao manual e não transigi. Disse:

“Comigo não haverá mais churrasco, sou vegetariano. E o senhor não sairá da cela, a não ser para o banho de sol. Isto até cumprir sua pena.”

Quando ele entrou na cela pela primeira vez os presos que ficavam na grade e não tinham a mesma regalia exultaram e gritaram para mim “É isso aí doutorzinho. Isso é que é moral. Caiu a casa do X-9. Nóis aqui é pobre e come polenta, maas não é corno nem puxa –saco de majorengo.”

Voltei para o gabinete e fui chamado por um soldado barrigudo, parecido com o Sargento Garcia do Zorro, para atender a minha primeira grande ocorrência.  Um bêbado contumaz tinha mostrado a estrovenga para uma verdureira. Ela,  muito religiosa, ficara indignada e fora prestar queixa.

Era uma senhora polonesa já entrada em anos. No popular, uma coroa polaca, dona Dombrowska.

Informado do caso, perguntei a ela com formalidade e respeito:

“Então minha senhora, o bêbado andou exibindo o órgão?”

Ela ouviu, pensou e respondeu com sotaque forte:

“Senhorrr, órgão ser como piano grande de igreja de Santo Estanislau. Tarrado mostrarr parra mim mais igual que corrneta de soprarr.”

Eu entendi, e respondi com certo embaraço:

“Pois é, minha senhora, o órgão masculino, pênis.”

Ela, irritada com a minha insistência, fez o gesto com as duas mãos espalmadas e me corrigiu:

“Nãodoutor! Serr pirroca mesmo!”

Bem, ali naquela pacata e bucólica Campo Largo da década de 70, permaneci por dois anos atendendo brigas de vizinhos, furto de criação e outras questões hoje denominadas como pequenas causas.

Com a convivência forçada, acabei admitindo e participando dos churrascos do açougueiro, o “seu” Joca Chifrudo, como era conhecido na cidade o corno arrependido.

E toda semana recebia a visita da velha verdureira que ia de carroça me vender ovos da granja com o pretexto de prestar queixa do Manezinho, o bêbado da praça que sempre a esperava na esquina para mostrar a pirroca .

“Bêbado tarrado ser desavergonhado, guarramputo, mas Delegado que fala esquisito ser gente boa”, dizia ela para o seu amigo Joca Chifrudo antes de partir pela rua de paralelepípedos lá para os lados de Bateias, onde ficava a imaginária e fantástica chácara da memória dos tempos perdidos.

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6 ideias sobre ““Seu” Joca Chifrudo

  1. macedo

    muito bom que legal ler algo bem escrito e com sensibilidade
    legal mesmo , como antigos e bons cronistas

  2. Pingback: “Seu” Joca Chifrudo | Boca Maldita

  3. Ivan Schmidt

    Grande José Maria: então é você o autor da piada célebre da polaca que arranjou um namorado no Passeio Público e teve de descrever o tamanho do “negócio” para a mãe curiosa?
    Qualquer dia conte a história do protesto que você fez contra a presença do Stroessner na posse do governador José Richa, em pleno Palácio Iguaçu…

  4. José Maria Correia

    Amigo Ivan sobre polacas e estrovengas existem várias versões, há uma piada da mãe baiana que casou as tres filhas no mesmo dia com um japones ,um portugues e um baiano. Terminada a lua de mel reuniu as tres e quis detalhes, outro dia conto o restante abcs J M

  5. Parreiras Rodrigues

    Dr. Lopes de Noronha, ex-promotor da comarca de Loanda, irmão do dr. Amilcar, meu advogado numa cadeia que peguei depois de “pegar emprestada a viatura policial – uma rural willis, para escapar duma ordem de prisão dada por um delegado pau-mandado da Arena regional”, em Santa Isabel do Ivai, 73.
    E a história do dr. Zé Maria – que me atendeu muito cordialmente quando diretor da PC – ele nem se lembra, me faz voltar nos idos quando chegava um delegado, um juiz para a delegacia ou para a comarca de Santa Isabel do Ivai. Doidm prá mostrar serviço, o capa preta de cara mandava esparramar circular nas paredes dos botecos e que tais, proibindo menores desacompanhados, fora de hora, jogo de azar, essas coisas.
    Menos dum mês passado, sem nada de maior importância para o incomodar, além do Bahia Preto fazer discurso sozinho, nem campanha era, 2 horas da tarde, sol batendo 40 graus, sozinho, no palanque da praça, em favor das candidaturas do dr. Otto, do Adãozinho, do Marquinhos, conforme o que lhe pagavam prá pinga de cada dia, a autoridade já conhecia everibódi e toda a monotonia rotineira pasmaceira que se lhe apresentavam como vizinhas e conviventes.
    Prá destediar, eis a Autoridade, agora já chamada sem cerimônia e às escondidas até de apelido como o Boca de Fogo – jogando sinuca no buteco do Joaquim Padeiro, truco na casa do dr. Mário Dentista e gritando juiz ladrão na beira da cerca nos jogos da temida armada associação atlética santa isabel à época melhor que o trio dito de ferro da Capital.
    Mané Preto era oficial de justiça e, juiz novo, vítima feita. Tinha negócio de dr, excia, que o negão era dessas coisas não. Que o diga o então juiz Bom Peixe Koeller, hoje em Londrina. Um dia, Bom Peixe chama Mané Preto e lhe diz: Mané, com a gente tá tudo em casa, mas vem o desembargador (num falo o nome nem no pau de arara) prá visita de correição e então modere o seu palavreado. Negão fez cabeça que sim e dia seguinte, Bom Peixe, Mané Preto -terno e gravata verrmelha, a única, e todos os membros das famílias forenses de todas as comarcas no aeroporto Atilio Accorsi em Loanda. Avião taxia, encosta, desce a escadinha. Pinta na porta aquele homão, dá uma olhada na multidão e de lá de cima, intima: Mané Preto, nego safado, fidumaégua, venha cá pro meu abraço! E partiu pro lado do crioulo, esquivando-se do alto escalão postado na beira da pista.

  6. Ricardo Viana

    Zé Maria, você escreve muito bem. Quando vai publicar um livro com essas memórias? Um abraço!

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