7:45Sem defesa

O lado “dark” da resistência

A luta armada e o justiçamento de militantes na ditadura

por Lucas Ferraz*

“Devo revelar que, espionando-o através de pessoas de quem ele não desconfia, para minha surpresa fiquei sabendo que para ele não é segredo nem a estrutura da rede nem… numa palavra, tudo. Para se salvar da acusação pela participação antiga, ele vai denunciar todo mundo. […]

– Ora, mande-o finalmente para o inferno! – Tolkatchenko foi o primeiro a gritar.

– E era o que se devia ter feito há muito tempo! – interveio com raiva Liámchin, dando um murro na mesa.”

Dostoiévski, “Os Demônios”

Trad. Paulo Bezerra (ed. 34)

O ex-capitão do Exército Cláudio Heitor de Alvarenga não esconde o inconformismo com a morte do irmão, Francisco Jacques de Alvarenga, em 28 de junho de 1973.

Militante que se insurgiu contra a ditadura (1964-85), foi executado aos 27 anos com quatro tiros, que acertaram a cabeça, o pescoço e o peito, na sala dos professores do colégio Veiga de Almeida, no bairro carioca da Tijuca, onde dava aulas de história.

Em seguida, os atiradores picharam na parede a sigla “ALN”, de Ação Libertadora Nacional -uma das maiores organizações da luta armada no Brasil- e fugiram.

“Francisco foi vítima dos dois lados: os loucos da extrema direita o torturaram, e os loucos da extrema esquerda o mataram”, disse àFolha o ex-capitão.

Não era o primeiro caso de justiçamento na esquerda brasileira. No auge da repressão, entre 1971 e 1973, quando o governo de Emílio Garrastazu Médici apertou a perseguição às organizações clandestinas, elas lançaram mão de um expediente revolucionário extremo: mataram alguns de seus próprios quadros, sob acusação de traição, vacilação ou discordância quanto aos rumos da luta armada.

Os justiçamentos eram precedidos por “tribunais revolucionários”. Não havia direito de defesa.

TABU Quarenta anos depois, essas mortes ainda são tabu. Em geral, militantes e ex-militantes preferem deixá-las de lado, sob o argumento de que primeiro é preciso apurar os crimes cometidos pelo Estado, tais como o desaparecimento, ainda não explicado, de 136 pessoas. E criticam com dureza ex-companheiros que assumiram em público ter participado delas.

Só agora a esquerda trata do tema, de forma mais ou menos aberta, porém sempre crítica: “Esse é um lado totalmente ‘dark’ da resistência. É uma forma de degeneração política”, disse à Folha o ex-titular da Secretaria de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, ex-militante da Polop (veja reportagem à pág. 8).

A Comissão da Verdade, criada em maio pela presidente Dilma Rousseff, não deverá apurar esses casos, considerados por membros do colegiado como crimes comuns, portanto já prescritos. O grupo quer apurar somente as violações cometidas pelo Estado.

Militares reformados e da reserva usam essas mortes para tentar justificar sua própria violência e inflam os casos de justiçamento, pondo na conta da esquerda assassinatos cometidos pelas forças da repressão.

Folha investigou, nos últimos seis meses, os casos de justiçamento na esquerda durante a ditadura. Quatro foram confirmados.

Além de Francisco Jacques, foram condenados à morte e executados pela ALN Márcio Leite de Toledo e Carlos Alberto Maciel Cardoso. No PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), o “justiçado” foi Salatiel Teixeira Rolim.

Os crimes são confirmados por parentes, militares, ex-guerrilheiros, além de registros oficiais. A reportagem se limitou a casos de esquerdistas assassinados por colegas. Nenhum dos quatro, perseguidos e presos pela ditadura, é reconhecido pelo Estado como vítima do período.

FRANCISCO JACQUES O irmão de Cláudio foi preso no DOI-Codi (centro de repressão do Exército) carioca, na Tijuca, em abril de 1973. Embora militasse na nanica RAN (Resistência Armada Nacional), não era da ala armada: agia entre professores e intelectuais.

De acordo com uma obra oficiosa produzida pela inteligência do Exército a partir de 1985 para dar sua versão sobre o período, intitulada “Orvil – O Livro Negro do Terrorismo”, antes da prisão Francisco Jacques “recebeu de um colega algumas armas do lote roubado da Guarda Noturna” do Rio. Pelo relato, as armas foram repassadas a Merival de Araújo, da ALN, amigo e ex-aluno que Francisco Jacques convidou para a luta contra a ditadura.

Na prisão, o professor foi submetido a choques elétricos, espancamentos, queimaduras. “Ele ficou desfigurado, a cabeça estava toda queimada de cigarro. Foi horrível”, conta sua irmã mais velha, a aposentada Consuelo Alvarenga, 83, que o viu ao ser libertado.

Um de seus algozes, revela agora o irmão Cláudio Heitor, foi o major Euclides da Silva Chignall, seu ex-colega na Academia Militar das Agulhas Negras. Daquela turma de 1954 saíram outros três militares que, anos mais tarde, seriam acusados de crimes de lesa-humanidade na ditadura: Carlos Alberto Brilhante Ustra, Audir Maciel e Átila Rohrsetzer.

Chignall não foi localizado pela Folha. Ustra afirma que o viu pela última vez há “uns seis anos, numa festa militar”, e que nunca mais teve notícias dele.

As diferenças entre Cláudio e seus quatro colegas de Agulhas Negras já eram claras em 1954. Em agosto, Cláudio se manteve longe da República do Galeão, grupo de civis e militares que se reunia na base aérea para conspirar contra Getúlio Vargas: juntou-se à defesa do Palácio do Catete, logo após o suicídio do presidente.

Fez amizades na esquerda, conheceu Carlos Marighella, ex-deputado e fundador da ALN, figura central na luta contra a ditadura. Legalista, se opôs ao golpe em 64 e acabou expulso da corporação.

“O Francisco me contou que, na tortura, Chignall o chamava de ‘filho da puta’, ‘irmão de filho da puta'”, disse Cláudio, 79, no apartamento paulistano onde passa parte do ano, quando não está no sul de Minas, trabalhando com café. “Queriam obrigá-lo a entregar Merival, seu ex-aluno. Para isso, o levaram para uma sessão de tortura no apartamento da minha mãe, na frente dela. Ameaçaram espancá-la, ele cedeu.”

Francisco Jacques marcou um encontro com Merival de Araújo, como a repressão exigiu, próximo ao apartamento onde ele vivia com a mãe, Clymene, no bairro das Laranjeiras. Entregue pelo amigo, Merival foi morto no DOI-Codi. O corpo, mutilado segundo a autópsia, foi enterrado como indigente num cemitério da zona norte do Rio. A família nunca viu os restos mortais, removidos mais tarde para uma vala clandestina.

“A morte do Merival foi muito chocante”, diz Maria do Amparo de Araújo, 62, ex-integrante da ALN. “Ele tinha o Jacques quase como um pai, o responsável por sua formação política.”

Guerrilheira aguerrida, Amparo ficou viúva três vezes na ditadura -seus companheiros foram todos mortos pela repressão- e tem o irmão, Luiz, desaparecido desde 1971. Com a morte de Merival, foi escalada para organizar o justiçamento de Francisco Jacques.

“Recebi a tarefa de observar uma pessoa, como observava muitas outras coisas”, disse Amparo, hoje secretária de Direitos Humanos da prefeitura do Recife. “Monitorei ele por uma semana.”

Seu companheiro à época, Thomaz Meirelles, é apontado pela inteligência do Exército com um dos quatro participantes da ação. Preso em 1974, permanece desaparecido. Amparo evita comentar a participação dele: afirma que tomou conhecimento do assassinato pelos jornais.

“Fazia parte da conjuntura da época. Estávamos preparados para tudo. E tínhamos uma disciplina, podíamos ser punidos”, conta ela. “Uma vez, por ter saído para passear, tive que moer 10 quilos de permanganato [para fazer bombas]. Não vou entrar no mérito, se faria de novo, se estava certo ou errado. Assumo minha responsabilidade, que é a mesma tendo feito o levantamento ou se eu tivesse apertado o gatilho.”

CARLOS ALBERTO Dois anos antes, outro militante da ALN passara pelo “tribunal revolucionário”: Carlos Alberto Maciel Cardoso, 25, foi morto no Rio em novembro de 1971. Era o segundo justiçamento da esquerda na ditadura.

A morte foi assim justificada pela ALN em texto publicado em seu jornal “Ação”: “Tratava-se de um traidor, ex-membro da ALN que, preso pela Polícia Federal, aceitara suas propostas de entregar companheiros e fornecer informações. Descoberto, foi sumariamente julgado e fuzilado por um comando da Ação Libertadora Nacional”.

Cardoso era um dos militares envolvidos na revolta dos marinheiros, no começo de 1964, colega do agente duplo José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo. Com o golpe, Cardoso foi preso e expulso da Marinha, retornando a seu Pará natal após sair da prisão.

Em 1971, já na ALN e de volta ao Rio, foi preso mais uma vez. Documento da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), de 2004, detalha a vida e a morte do militante:

“Após sua prisão, foi transferido para o Cenimar [Centro de Inteligência da Marinha]. No dia seguinte, prestou declarações sobre suas atividades e concordou em passar a trabalhar para os órgãos de segurança. Para isso, foi solto para cobrir um ‘ponto’ na Tijuca. Na ocasião, ficou estabelecido que depois do ‘ponto’ com a ALN faria um contato com integrantes do Cenimar, o que não aconteceu. No dia 13, foi morto […]. Foram reconhecidos dois banidos e uma foragida como executantes do que indicava ser um justiçamento.”

Um dos executores era Antônio Carlos Nogueira Cabral, o “Alfredo”, que em 1972 seria assassinado no DOI-Codi carioca. Quem conta é sua então companheira, a médica Lídia Guerlenda: “Ele me contou esse episódio bastante abalado. Disse que Carlos Alberto fugiu, entrou em uma casa, e eles tiveram que correr atrás, dando tiros. Sei que foi muito traumático, houve um corre-corre no meio da rua”.

O caso revela como essas vítimas vivem num limbo. Sua família tentou duas vezes o reconhecimento de que ele foi vítima do período pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Os pedidos foram negados, com base na lei nº 9.140, de 1995. Aplicada também na Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, que concede indenizações, a lei foi aprovada de maneira restritiva e só abarca as vítimas de crimes do Estado.

MÁRCIO TOLEDO O primeiro “justiçado” durante a ditadura foi Márcio Leite de Toledo, em março de 1971. Foi executado com mais de dez tiros na rua Caçapava, nos Jardins, em São Paulo, onde tinha um “ponto” com um colega de organização. Tinha 26 anos. Um dos comandantes da ALN, Márcio estava descontente com os rumos da luta armada: julgava-a cada vez mais distante do povo.

A ALN decidiu justiçá-lo num momento em que seus principais líderes estavam mortos, caídos por delação de companheiros. Primeiro tombou Carlos Marighella, em novembro de 1969, assassinado a tiros na alameda Casa Branca, na capital paulista. No ano seguinte, morreu, numa sessão de tortura, o jornalista Joaquim Câmara Ferreira, sucessor de Marighella. Na tentativa de evitar mais baixas, a ALN recorreu aos justiçamentos.

Presente em quase todas as revoluções e lutas armadas da história, a prática estava viva na cartilha revolucionária dos anos 60 e 70. Em Cuba, era quase rotina. Em seus diários da campanha de Sierra Maestra, na década de 50, Che Guevara narra como executou um colega que fraquejara. Che descreveu com frieza seu primeiro assassinato -mas, médico que era, com grande precisão científica.

No Brasil, Elza Fernandes, 16, já havia sido enforcada em 1936, pela suspeita de trair os comunistas. A decisão, sem base em provas, foi tomada pelo líder Luís Carlos Prestes (1898-1990). O caso é narrado no romance histórico “Elza, a Garota” (Nova Fronteira, 2008), de Sérgio Rodrigues.

Márcio conhecia bem Cuba, onde treinara guerrilha no final dos anos 1960. Filho de integralista, nascido na família proprietária do próspero ITE (Instituto Toledo de Ensino), em Bauru, “optou conscientemente pela luta armada”, afirma o irmão Antônio Eufrásio de Toledo Filho, o Toledinho, 70.

Lídia Guerlenda recorda uma ação de que participou com Márcio, semanas antes de sua morte. Achou-o displicente. “Ele era o ‘matraqueiro’, responsável por dar cobertura aos colegas na ação com uma metralhadora”, diz. “Éramos quatro, e ele deixou a metralhadora no banco do carro, pôs a mão no bolso e ficou assobiando. Talvez fosse uma maneira de aliviar a tensão, sei lá, mas a atitude dele deixou todos indefesos.”

Carlos Eugênio Paz, 62, esteve no comando da ALN em sua fase final. Participou de inúmeras ações armadas e execuções. Nunca foi preso. Diz que muitos ex-companheiros não falam mais com ele por ter assumido publicamente a responsabilidade nesses episódios. Amparo diz passar pela mesma situação. Ambos aceitam colaborar com a Comissão da Verdade.

Pupilo de Marighella, Carlos Eugênio começou a militar aos 16 anos. Infiltrou-se no Exército, onde atuou por alguns anos antes de desertar e cair na clandestinidade. Hoje é professor de música no Rio.

Como comandante da ALN, participou do justiçamento de Márcio e referendou outros, como o de Carlos Alberto Maciel Cardoso. Foi um dos atiradores na ação que matou o industrial Henning Albert Boilesen, em 1971, um dos financiadores da Oban (Operação Bandeirante), braço da repressão.

“A ALN estava vivendo anos terríveis, começamos a perceber que tínhamos que tomar medidas de defesa”, Carlos Eugênio contou na sede estadual do PSB, no largo da Carioca. “Se fosse detectado que uma pessoa ia ser presa ou cair, ajudando com informações que levassem à derrubada da organização, oferecíamos a oportunidade de deixar o país, como fizemos com Márcio. Como ele não aceitou, a organização iria justiçar.”

Carlos Eugênio tentou uma cadeira na Câmara dos Deputados em 2010, usando seu codinome dos tempos da ditadura, “Clemente”, mas não se elegeu.

“Márcio foi o primeiro. Não havia maneira de enfrentar a questão. A ALN tomou essa medida corretamente, medidas que só se tomam em tempos de guerra. É uma medida extrema e irreversível, temos que conviver com ela.”

O manifesto deixado com o cadáver argumenta que a morte era necessária para resguardar a organização. Num dos bolsos de Márcio, haveria uma carta em que a vítima manifestava o desejo de recuar na luta armada.

Dois dias antes de morrer, Márcio visitou um primo em São Paulo, o empresário Francisco José de Toledo, hoje com 71 anos.

“Ele tinha dito que queria unificar todas as organizações da oposição contra o regime. E comentou o desejo de, antes do recuo, armar uma operação contra o delegado Sérgio Fleury, o grande carrasco da esquerda brasileira”, disse Toledo.

Fleury esteve no local do crime para reconhecer o cadáver de Márcio, um dos terroristas mais procurados pela repressão.

Para Toledinho, o irmão é um herói: “Ele tinha plena consciência das circunstâncias, tenho muito orgulho dele e das opções que tomou”. Sobre Carlos Eugênio, o irmão de Márcio diz que ele está “condenado pela consciência”.

SALATIEL ROLIM O quarto justiçamento na esquerda é do militante Salatiel Teixeira Rolim, em julho de 1973. Quase septuagenário, ele foi morto a tiros no bar em que trabalhava, no Leblon, pouco depois de deixar a prisão.

Na época, Salatiel estava desligado das atividades políticas. O PCBR o acusou, sem provas, de desviar dinheiro do partido para uso pessoal e de delatar o militante Mário Alves, morto pela repressão. O procedimento, semelhante ao da ALN, incluiu pichação com a sigla do partido e um panfleto, assinado pelo “Comando Mário Alves”.

Segundo o historiador Jacob Gorender, um dos fundadores do PCBR, três pessoas participaram do homicídio, que ele descreve no livro “Combate nas Trevas” (Ática, 1987) como uma ação “sem conteúdo político”, tratando-se de “um ato de vingança, um assassinato”.

“É verdade que suas informações à polícia do Exército marcaram o início da catástrofe do PCBR em janeiro de 1970, mas não se deve omitir as torturas, que o esmagaram, nem a responsabilidade de outros inimigos”, escreve Gorender. “Salatiel não passou para o lado do inimigo.”

O ex-preso político e professor de física aposentado Jeferson Barbosa se lembra com carinho do “velho Sala”. Eles ficaram amigos na prisão, na virada dos anos 70. “Éramos jovens, entre 20 e 25 anos. Salatiel era experiente, tinha já 65”, conta. “Sabia tudo de escola de samba e Carnaval, e até deu um curso na prisão. Tudo que sei de cultura carioca aprendi com ele.”

Vivendo em Bauru, o amigo de Salatiel diz que o pretexto de sua morte “é uma piada de mau gosto, espalhada por canalhas”. “Historicamente falando, os justiçamentos são uma grande injustiça. No caso do Salatiel, armaram uma canalhice. As explicações apresentadas são todas fantasiosas. Ele é herói da luta armada revolucionária.”

ESPIRAL A escalada da violência nos anos 1960, com ações contra a ditadura desencadeando o aumento da força da repressão, provocou uma espiral com reflexos nas organizações armadas. A repressão era justificada como uma medida adequada à ameaça terrorista.

Os justiçamentos vieram nesse contexto -e por pouco não detonaram nova onda de violência. Cláudio Heitor Alvarenga, pela primeira vez, admitiu à Folha que tentou vingar o irmão morto.

Sobreviveram à ditadura apenas dois dos participantes do justiçamento de seu irmão Francisco Jacques: Amparo e um homem que Cláudio diz não lembrar quem é. Amparo afirma desconhecê-lo. Carlos Eugênio Paz cita um amigo, Flávio Augusto Leão Sales, do Rio, ex-integrante da ALN que teria participado da ação. Hoje trabalhando com informática, Sales nada fala sobre a luta armada.

Para Cláudio, o participante era um professor carioca, que conviveu com seu irmão. “Ainda nos anos 70 fui atrás dele na escola onde trabalhava. Entrei armado, para matá-lo”, conta. “Mas, quando cheguei, o vi com a filha, que era pequena. Desisti.”

Ele diz ter tomado conhecimento da participação de Amparo em fins dos anos 90, ao ler “Mulheres que Foram à Luta Armada” (Globo, 1998), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, no qual ela conta a história pela primeira vez.

“Mulher não se mata, eu ia jogar ácido para manchá-la”, afirma o ex-capitão, anistiado da expulsão do Exército, na década de 60. Ele garante que o desejo de vingança ficou para trás, apesar do ressentimento, que diz ser latente.

“Não aceito a palavra justiçamento, para mim é assassinato. Me sinto vítima dos dois lados. Mais de uma vez vi que a virtude está no meio. O meu colega de turma que o torturou, o que é aquilo? Um lixo. E os malucos da extrema esquerda, outro lixo.”

————————————

Questão de ordem

A esquerda começa a discutir os justiçamentos

Quarenta anos depois, a esquerda começa a debater os justiçamentos. Em seu recém-lançado “K.” [Expressão Popular, 178 págs., R$ 15], romance que tematiza a luta contra a ditadura, o jornalista Bernardo Kucinski narra a história de um jovem casal: uma professora de química da Universidade de São Paulo e um físico que trabalha na iniciativa privada. Eles desaparecem misteriosamente em 1974, durante uma das fases mais violentas da ditadura militar.

O livro é um dos 60 primeiros pré-selecionados para o Prêmio Portugal Telecom, um dos mais importantes do país, com prêmios que podem chegar a R$ 100 mil.

Jornalista e professor, Kucinski trabalhou no Palácio do Planalto, no primeiro mandato do governo Lula (2003-07), como assessor do presidente, elaborando uma crítica diária da imprensa e sobre a conjuntura do país.

Sob a narrativa ficcional -ou “transcendental”, como o autor prefere-, a história contada é a de sua irmã, Ana Rosa Kucinski Silva, e seu marido, Wilson Silva. Militantes da ALN, os dois foram vistos pela última vez em abril de 1974, nos arredores da praça da República, no centro de São Paulo. O casal integra a lista de desaparecidos políticos.

Um dos capítulos finais, “Mensagem ao companheiro Klemente”, é uma carta de três páginas que muitos ex-militantes pensaram ser real, endereçada a Carlos Eugênio Paz, o Clemente, um dos últimos comandantes da ALN.

A missiva é repleta de críticas à “cegueira” da organização naquele momento de intensa repressão, caminhando quase para um suicídio consciente, com um “sacrifício inútil” de muitas vidas.

O relato, assinado por um certo “Rodriguez”, interpela “Klemente” sobre mortes como a de Márcio Leite de Toledo.

“As últimas ‘quedas’ [prisões] provam o que nós já desconfiávamos: o Márcio não era o informante. Ele foi executado porque havia pedido à Coordenação Nacional que o deixasse se afastar. A organização mentiu no comunicado. Márcio não foi executado para resguardar a Organização. Foi executado para dar um recado: quem vacilar vai ser julgado como traidor”.

A carta critica ainda aqueles justiçamentos cujas vítimas morreram por delatar companheiros em sessões de tortura: “O recado era que quem ‘abre’ [delata], mesmo sob tortura, é um traidor. Como se fosse possível julgar quem foi torturado. Criaram um tabu em torno do assunto”.

Mais adiante, ele escreve: “Ficamos cegos; totalmente alienados da realidade, obcecados pela luta armada”.

Segundo o narrador, até na “justiça capitalista, quando não há unanimidade, não se condena à morte”, referindo-se ao “tribunal revolucionário” que decidiu pela morte de Márcio.

Um dos “juízes” que participou da decisão, amigo da vítima, foi contra a execução. “Vocês condenaram sem prova, sem crime tipificado. Incorporaram o método da ditadura até na linguagem da política; no comunicado a Organização chama Márcio de ‘elemento'”.

Procurado pela Folha para comentar a crítica feita no livro à atitude da esquerda em relação aos justiçamentos, Bernardo Kucinski não se dispôs a falar do tema e disse que pôs no livro tudo o que pensa a respeito.

“Não é um assunto importante na atual conjuntura, é um tema diversionista, típico da política editorial da Folha nos últimos anos”, disse. “O importante é explicar os crimes da ditadura e os métodos usados pelos militares para tantas atrocidades.”

Questionado se os justiçamentos poderiam ser considerados crimes da ditadura, mesmo não tendo sido cometidos pelo Estado, Kucinski disse: “Não sei, não quero entrar nessa discussão”.

NILMÁRIO Ex-ministro de Direitos Humanos no governo Lula, Nilmário Miranda é um dos poucos à esquerda que fala do tema sem exaltações. E diz que o assunto deve ser tirado do limbo.

Nos anos 70, Miranda militou na Polop (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária), tendo ficado preso por três anos e meio.

Já nos anos 1990, quando era deputado federal pelo PT e presidiu a Comissão Externa para os Mortos e Desaparecidos Políticos da Câmara, Miranda propôs uma legislação semelhante à do Chile.

Segundo a proposta, a lei abrangeria não só os mortos e desaparecidos pela repressão do Estado, mas também em decorrência de violência política. Isso permitiria incluir os “justiçados” e até as vítimas civis de balas perdidas em ações armadas.

“O justiçamento é incômodo, ninguém gosta de discutir. Não há como igualar isso aos crimes do Estado”, afirma. “Mas esse é um lado totalmente ‘dark’ da resistência. É uma forma de degeneração política.”

Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e coautor do livro “Dos Filhos deste Solo” (Boitempo, 1999), importante levantamento de mortos e desaparecidos, ele diz que sempre se “incomodou” com a morte de Márcio Leite de Toledo.

“Essas pessoas foram vítimas da violência política provocada por um ambiente de autoritarismo”, diz Miranda. “É preciso encerrar essa questão. As pessoas falam que tem muita coisa para fazer, poderiam começar levantando esses casos.”

Os crimes da direita na conta da esquerda

Ao inflar os crimes da esquerda na tentativa de igualar os dois lados, militares difundiram nos últimos anos listas de supostos justiçamentos, algumas com até 30 nomes. Francisco, Márcio, Carlos e Salatiel estão nelas, além de nomes desconhecidos ou sem vínculo com as organizações indicadas. Muitos foram incluídos maldosamente.

É o caso de Ari da Rocha Miranda, morto acidentalmente em uma ação da ALN, em junho de 1970. Baleado por um colega ao se posicionar, desastradamente, na linha de tiro, ele não resistiu à hemorragia.

É também o caso de Amaro Luiz de Carvalho, membro do PCR (Partido Comunista Revolucionário) e líder camponês de Pernambuco. Segundo livros e sites (tais como o de Carlos Alberto Brilhante Ustra ou o da organização “Terrorismo Nunca Mais”), Amaro foi justiçado por envenenamento, na Casa de Detenção do Recife, em agosto de 1971, por colegas de organização. A afirmação é falsa.

Amaro morreu um mês antes de deixar a prisão. Odiado pelos usineiros locais, era um dos nomes mais visados no Estado. Documentos indicam que o delegado Fleury esteve na Casa de Detenção na semana em que Amaro morreu, mas é impossível, pela ausência de provas, relacionar um fato a outro.

Além do depoimento de presos que conviveram com Amaro, a necropsia desmente a versão dos militares, indicando como causa mortis “hemorragia pulmonar, decorrente de traumatismo do tórax, por instrumento contundente”. Em 1996, o Estado o reconheceu como um dos mortos da ditadura, assassinado quando estava sob sua responsabilidade. (LF)

*Reportagem publicada no caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo no dia 17 de junho de 2012


Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.