6:47O ANJO NO ASFALTO

por José Maria Correia

Tenho escrito sobre perdas e ausências.

Inventários de crepúsculos, estórias de quase vida.

Vez por outra surge em minha pena um tema recorrente, minha quase morte.

O acidente em que me envolvi na estrada das praias e me manteve hospitalizado por um mês.

O que mais me perguntam os amigos é se naquele momento cheguei a ver a tal luz branca que dizem surgir no fundo de um túnel quando a vida vai se esvaindo.

Não, não vi a tal luz, mas em compensação tive um encontro com um anjo.

Não o ser celestial de imensas asas brancas, como pintava Tintoretto, mas uma pessoa de carne e osso.

Um operário de rodovia vestindo um surrado macacão e botas.

Enquanto meu carro destroçado estava mergulhado em uma ravina profunda e coberto pela mata, pensei que talvez um dos motoristas dos carros que vinham atrás de mim pudesse vir em meu socorro.

Nenhum parou.

Permaneci prensado entre destroços e sob uma árvore caída por longos minutos.

Ouvia apenas o rumor da tempestade que caia e uma algaravia de passarinhos silvestres.

Não conseguia falar nem me mover, tinha fraturas na coluna, no plexo e no rosto e assim permaneci até a chegada do anjo.

Ele precisou abrir uma clareira entre estacas de bambu afiadas como facas.

Quando o vi já estava com as mãos dilaceradas e cheias de sangue e mais ferido ficou ao remover os cacos de vidros das janelas e do para brisa.

Entre nossos sangues, fumaça, lama, muitos cortes e ossos rompidos ele limpou a minha fronte amparou a minha cabeça com delicadeza e passou a estancar as hemorragias.

Eu tinha dores terríveis e estava quase sem sentidos, porém o anjo no seu linguajar simples nãome deixou desfalecer e nem me desesperar , me animou o tempo todo dizendo que eu iria me recuperar, que não estava tão grave e que já havia pedido o resgate de ambulância.

Só quem passou por uma situação limite de quase vida ou quase morte sabe o que representa o apoio de uma pessoa, alguém a amparar o seu corpo em um estado miserável e sua cabeça caída, quando muitos tem repulsa até em aproximar-se ou mesmo fixar o olhar.

Confesso que até algum tempo atrás eu estava cético em relação à existência da solidariedade e os sentimentos mais nobres entre as pessoas, principalmente entre desconhecidos.

Na minha longa caminhada pela vida pública vi que cada vez mais o individualismo parecia prevalecer sobre o coletivismo.

Uma espécie de salve-se quem puder em meio ao egoísmo e a onda de consumo como desvalor.

O fato é que tudo que procurei fazer nesses anos todos de vida pública, que na realidade foram décadas, e com um esforço meio quixotesco, foi lutar em favor dos desassistidos, dos assalariados de baixa renda e dos desorganizados, embora tivesse claro que a maioria deles sequer tivesse a exata noção de que precisassem ser defendidos e o mais comum é que confundissem o defensor com o opressor e até invertessem esses personagens.

– “Assim é a vida e assim são as lutas que se travam “, foi como desabafou comigo em uma noite paulistana o filósofo Carlito Maia no Bar Pirandello.

Mas o que queria mesmo dizer e não consigo expressar satisfatoriamente, é que naquela tarde escura de tempestade, perdido em meio ao verdor da mata atlântica e semimorto, o anjo que me salvou era justamente um trabalhador braçal da categoria mais humilde que imaginei representar , e que não hesitou em colocar em risco talvez seu único patrimônio, o próprio corpo, e ao me salvar a vida, salvou em mim também algo que eu havia perdido.

A fé prodigiosa no ser humano capaz de doar-se e a crença na solidariedade entre as pessoas.

Tive medo de sofrer a suprema tragédia citada por Miguel Unamuno, morrer sozinho e abandonado , entretanto ao resgatar-me naquele dia , o anjo operário resgatou em mim também o amor e a esperança nos vivos.

E por isso prossigo agora com a fé que comigo renasceu.

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6 ideias sobre “O ANJO NO ASFALTO

  1. Adrianne Correia

    No hospital, em Paranaguá, informaram que este anjo chegou muito ferido. De suas mãos retiram muitos cacos. Os cortes produzidos pelos bambus eram fundos e suas mãos precisaram ser enfaixadas. Ao telefone, ele nos dava notícias e nos consolava. Não conseguimos encontra-lo. O celular ele emprestou em uma bodega da estrada e depois sumiu, como um anjo.

  2. Martha Feldens

    Linda homenagem ao anjo que cruzou com você, Zé Maria. Os anjos são assim, vêm e vão embora sem esperar recompensa. Não desistamos de acreditar no ser humano. Belo texto. Parabéns.

  3. bleitão

    Camarada chorei ao ler suas palavras, realmente voce tem todo tempo do mundo para achar esse anjo é só procurar por la.

  4. Débora

    Grande Zé Maria. Nessa vida, muitos são os anjos, anônimos, que nos resgatam e salvam. Ainda bem que ele te encontrou e cuidou e que hoje vc está recuperado e nos brinda com esse maravilhoso texto. Beijos Saúde Paz Débora Iankilevich

  5. Célio Heitor Guimarães

    Pois é, prezado Zé Maria, o anjo que o salvou não ganha salário-alimentação nem bolsa-livro; não tem automóvel de luxo à sua disposição nem direito a 14º e 15º salários. Mas tem o que os outros não têm: a chama divina do verdadeiro ser humano.

  6. paulo Furiati

    Querido Ze! Voce com o acontecido, recuperou sua antiga alma solidária! Beleza camarada!

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