11:19De como superar o absurdo

Por Ivan Schmidt

Josef K., personagem do romance O processo, escrito por Franz Kafka (1883-1924), vê-se enredado por uma série de acusações que desconhece totalmente, que em nenhum momento das intermináveis sessões de julgamento ou mesmo na fase de interrogatórios foram esclarecidas, como seria de esperar em circunstâncias normais. O pior é que o acusado também foi privado da prerrogativa de se defender, embora a tarefa fosse impossível, dada a ausência de acusação formal.

Para os conhecedores da obra de Franz Kafka, o romance publicado em 1925 (um ano depois de sua morte), por iniciativa do amigo Max Brod, constitui perfeita metáfora do regime nazista, que dentro de poucos anos colocaria a nação alemã vergada diante do insano ditador Adolf Hitler e, tudo o mais que se sabe do fatídico período do Terceiro Reich, para o qual o delirante cabo austríaco imaginava a duração de mil anos. Estendeu-se apenas de 1933, quando Hitler assumiu o poder, a 1945, ao ser destroçado pelas forças aliadas (Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética), cujas tropas foram as primeiras a invadir a Alemanha, chegando ao bunker de Hitler pouco depois de seu suicídio.

Voltando à trama kafkiana, temos um processo em andamento, um acusado, os acusadores e nenhuma acusação. Os acusadores falam a não mais poder, mas não são capazes de colocar em forma inteligível o libelo acusatório, que se torna enfadonho pela absoluta falta de senso, ao passo que ao acusado se nega toda e qualquer tentativa de expor suas razões, assim como o requisito elementar de, ao menos, conhecer os motivos da acusação.

Na CPI do Cachoeira, que por esses dias corre no Congresso Nacional, temos a repetição como farsa das cenas descritas por Kafka, em muito superando o absurdo enredo do romance.

O acusado de explorar o jogo clandestino, Carlos Augusto Ramos, o Cachoeira, café pequeno em comparação com a rede paralela de poder e influência sobre governos estaduais e empresas privadas, que o mesmo comandava desde Goiânia, utilizando um reles celular que lhe garantiram ser à prova de gravações.

Ao contrário de Josef K., Cachoeira sabe exatamente qual é o interesse precípuo da CPI, sendo inimaginável supor que não esteja consciente de sua atuação à margem da lei, das acusações que pesam sobre ele e das centenas de páginas e minutos televisivos ou radiofônicos que nas últimas semanas estarreceram a população com a frieza e picardia com que o contraventor tratava de assuntos de interesse pessoal e escuso com governadores, agentes públicos e empresários, embora tivesse usado quase sempre interpostas pessoas. Enfim, uma lídima societa celeris, integrada até por antigos agentes secretos dos serviços de inteligência do governo federal. Só faltou arregimentar o cabo Anselmo, que ainda está por aí dando sopa.

Chocou a sociedade, sobremaneira, a ligação de Carlinhos Cachoeira com o senador Demóstenes Torres, hoje sem partido, arvorado como um dos derradeiros varões de Plutarco a ocupar uma cadeira na Câmara Alta, de onde desferia inflamados protestos contra a corrupção dos governos Lula e Dilma. Com perdão da péssima analogia, é como se estivéssemos diante da rediviva mulher de César, aquela que parecia, mas não era…

Então, vamos combinar. Há um acusado que sabe do que o incriminam, daí ter contratado um dos mais afamados criminalistas do país, Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça de Lula, conhecedor profundo da perícia da Polícia Federal em desvendar malfeitos de criminosos de colarinho branco. No contexto atual, quem o contratou espera uma argumentação jurídica suficiente para tornar sem efeito as sobejas provas colecionadas pela Operação Monte Carlo.

Antípoda de Josef K., Carlinhos Cachoeira tem informações preciosas sobre as figuras mais importantes que atendiam suas ligações ou ligavam para ele. Sabe também do que o acusam: jogatina ilegal, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e outras modalidades da corrupção. Mas se negou a falar na CPI. O personagem de Kafka fez das tripas coração para expor suas razões pessoais perante os inquiridores. Esses não permitiram que o fizesse, mesmo que também estivessem inteiramente cegos quanto ao fulcro das acusações.

Os integrantes da CPI fizeram 60 perguntas a Carlinhos Cachoeira e ele não respondeu nenhuma, alegando ser esse um direito garantido pela Constituição. “Prefiro permanecer calado”, repetia como autômato o explorador da loteria zoológica. Instruído pelo advogado, o bicheiro e provável sócio oculto da Delta Construções, que freqüentava governadores e tinha despachante de luxo no próprio Congresso, enxovalhou um dos poderes da República, com uma desfaçatez jamais observada em sessões convocadas por comissões de inquérito. Kafka deve estar revirando no túmulo, de tanto rir.

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