8:41Uma senhora revista

por Ruy Castro*

Foi uma espécie de realeza da imprensa brasileira, com toda a nobiliarquia, as sucessões dinásticas e o cartório de mordomias, rapapés e fidalguias que fazem o cardápio da realeza. E, como esta, depois de um período de opulência e fartura, viu-se também em chinelos, com mais contas a pagar do que as armas e os brasões em seu escudo. “Senhor” (nos primeiros 12 números, chamada de “Sr. – A Revista do Senhor”) foi a última de uma grande tradição de revistas românticas brasileiras. Anos depois, as revistas mensais que a sucederam trocaram sua superioridade majestática e seu olímpico desprezo pelos fatos por uma espécie de urgência republicana e um excessivo apego à atualidade.

O curioso é que, ao surgir, em março de 1959, nada podia parecer tão moderno e “de vanguarda” quanto “Senhor”. Em pouco tempo, ela faria parte de uma nova estética que incluía Brasília, o concretismo, a bossa nova, a revolução gráfica do “Jornal do Brasil”, os anúncios da Volkswagen e do Banco Nacional, as capas dos discos da gravadora Elenco, os móveis de linhas retas -uma estética de formas claras, enxutas, essenciais.

O homem (e a mulher) a quem essa estética se dirigia era o adulto consciente, responsável e lúcido; em política, liberal e progressista; de preferência, solteiro (e, se casado, com uma mulher parecida com ele); próspero o suficiente para ter um carro novo e certas modernidades domésticas, como uma TV ou um estéreo, mas sem deslumbramentos; gourmet, viajado, à vontade em aviões; atento a novidades, mas sem muita pressa para adotá-las; bem-humorado, bem vestido, bebedor equilibrado; e, finalmente, leitor de livros, fã de João Gilberto e Tom Jobim e dos filmes italianos e franceses.

Acima de tudo, adulto -eis a palavra (por isso, ele era um “senhor”, não um imaturo espremedor de espinhas). Ou tudo isso seria pedir muito de um brasileiro? Mas, se “Senhor” e aquela estética existiam, por que não esse leitor?

RECEITA

“Senhor” se enquadrava em tal espírito e estética não tanto pelo que apresentou de novidades gráficas em seus (ainda desajeitados) primeiros números, mas pelo que rapidamente se tornaria. O importante é que sua receita editorial já surgiu pronta no nº 1. Talvez pela qualidade dos cozinheiros.

Basta consultar o expediente para se ver como, desde sua estreia, “Senhor” continha quase todos os nomes que seriam importantes em sua trajetória editorial, gráfica e comercial. Daí que os homens que se sucederam na sua condução pelos cinco anos de existência da revista puderam fazê-lo sem traumas -todos sabiam do que “Senhor” se tratava. Nahum Sirotsky, 33 anos em 1959, fundador e primeiro editor e redator-chefe, formou sua equipe com Paulo Francis, 28, como editor-assistente e Luiz Lobo, 25, como editor-assistente-executivo.

Devia significar que Francis estava mais próximo de Nahum na discussão da pauta, enquanto Lobo tinha de efetivamente meter a mão na massa, produzindo títulos, legendas e textos avulsos não assinados, além das matérias que levavam sua inconfundível chancela.

Não que não se percebesse a presença de Francis em muitas notas da seção “Sr. & Cia.”, mas era Lobo que parecia onipresente na revista. De sua máquina de escrever saíram brilhantes textos sobre etiqueta, gravatas, ressaca, guarda-chuva, bermudas, banho de mar, camisas, sapatos, chapéus, omeletes, uísques -enfim, toda a futura receita das revistas masculinas brasileiras, até hoje. O fato de, disfarçadamente, haver um anúncio do produto nas vizinhanças desses textos não os invalidava.

O consagrado artista plástico Carlos Scliar, 38 -sem muita experiência no ramo editorial, mas com ideias frescas e arrojadas-, era o diretor do departamento de arte, já assistido desde o nº 1 por um promissor Glauco Rodrigues, 29, e pelo já completo cartunista Jaguar, 26 -que, além de contribuir com nove cartuns no primeiro número, tinha de desenhar também uma quantidade de vinhetas não assinadas para ilustrar pequenos tópicos e cobrir eventuais buracos.

Clarice Lispector, que, no futuro, tornar-se-ia uma marca da revista -e quase exclusiva, porque estava longe de ser ferozmente disputada pelo mercado-, também já comparecia no nº 1 como colaboradora. Assim como dois homens que, idem, um dia assumiriam a direção de “Senhor”: Odylo Costa, filho, e Reynaldo Jardim -nenhuma coincidência nisso, eram apenas dois nomes em evidência suficiente para colaborar numa nova revista.

FÓRMULA

A fórmula era um compósito do sumário de diversas revistas americanas e europeias que Nahum gostava de ler: artigos, análises, humor, entrevistas, uma ou outra reportagem, ensaios fotográficos, serviços, ficção, cartuns e um rico picadinho composto de “Sr. & Cia.”, “Sr. na Tecnologia”, “Sr. & Política”, “Sr. & Economia” -nem todas as notas dessas seções parecendo desinteressadamente escritas (algumas, às vezes, resvalavam pela matéria paga).

No quesito ensaio fotográfico, Salomão Scliar, Armando Rozario, Flávio Damm e Fulvio Roiter -quatro dos maiores fotógrafos do país- revezavam-se na tarefa de fotografar tanto os utensílios citados nas matérias de serviços quanto a “garota do mês” (que não tinha esse nome, mas era como se tivesse), antes de Richard Sasso quase monopolizar as câmaras a partir do nº 18.

No primeiro número, “Senhor” teve apenas oito páginas de publicidade, sendo duas de matéria paga e uma, a da contracapa, um anúncio do dicionário Caldas Aulete, da própria Delta-Larousse (ou seja, um “calhau”; era como se não valesse), num total de 108 páginas de revista. Donde o milagre não foi a saída deste primeiro número, mas a do nº 2.

“Senhor” só se realizaria publicitariamente a partir do nº 9, com a chegada do experiente Ivan Meira (com direito a nome em negrito no expediente) para chefiar o departamento comercial. Com ele, a revista sairia por bastante tempo com uma média de 20 a 30 páginas de anúncios para cerca de cem de editorial -média muito boa e que, se mantida, permitiria a “Senhor” circular para sempre.

Além disso, as principais agências de propaganda do país -Standard, Norton, J. W. Thompson, Interamericana, McCann-Erickson, Lintas- adoravam a revista. Entre outros motivos, porque ela as incitava a criar os anúncios mais “modernos” e diferentes possíveis (o que fizeram repetidamente).

Às vezes, para mostrar o que e como queriam, Luiz Lobo e Jaguar se aventuravam eles próprios na produção de anúncios (os chamados “diretos”), nem sempre contando com a compreensão do cliente. Mas é fascinante como, tantas vezes, as páginas de publicidade em “Senhor” se confundiram com as do editorial.

No departamento de arte, Scliar admitiu dois novos assistentes: Caio Mourão, no nº 8; Bea Feitler, no nº 9. Ivan Lessa foi contratado como tradutor e redator para assuntos gerais no nº 3 e comicamente demitido no nº 10, mas continuou amigo de todo mundo e a colaborar esporadicamente. Em seu lugar, entrou Newton Carlos, que ficou por pouco tempo e foi substituído por Jayme Negreiros.

OSCILAÇÃO

No nº 17, um novo e importante cargo foi criado -o de editor de política e economia-, para acomodar a contratação do experiente Newton Rodrigues. Com isso, pelos números seguintes, “Senhor” oscilaria entre as pautas divertidas e informativas de Luiz Lobo (cujo texto caracterizava a revista, quase sempre se dirigindo ao leitor como “o Sr.”) e as graves análises da conjuntura nacional por Newton Rodrigues.

Com a saída de Lobo, no nº 20, o caminho se abriu para Newton, que ameaçou tornar “Senhor” uma revista mais pesada e sisuda. Mas Paulo Francis, com sua autoridade de editor-assistente, reequilibrava o jogo, com artigos sobre literatura, teatro e cinema. (Sete anos depois, em 1966, Newton Rodrigues e Paulo Francis se reencontrariam no “Correio da Manhã”, em papéis trocados: Newton como seu severo redator-chefe, e Francis, como editorialista, ou seja, seu subordinado -e sofrendo o rigor do chefe.)

FICÇÃO

Um dos fortes era a ficção, sempre decidida por Francis. Com sua amizade e ligação com Ênio Silveira, sócio-proprietário da (em breve) influente editora Civilização Brasileira, era natural que publicasse em “Senhor” contos e novelas de F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, D. H. Lawrence e Graham Greene, ou um trecho do novo e escandaloso romance “Lolita”, de Vladimir Nabokov, todos autores da Civilização.

Outros super-escritores (nem todos famosos no Brasil) que ele deu na revista foram William Faulkner, George Orwell, Truman Capote, Isaac Bábel, Aldous Huxley, Thomas Mann, Albert Camus, Ionesco, James Baldwin, Jorge Luis Borges e Kafka (a maioria, em tradução de Ivo Barroso).

E quem, além de Francis, em 1959/60, se lembraria de Dorothy Parker e James Thurber, autores americanos cujo “wit” os separava do grande público? Sem falar na ficção nacional: Marques Rebelo, Campos de Carvalho, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, muito de Clarice, tantos mais, e duas obras-primas escritas especialmente para “Senhor”: as novelas “Meu Tio, o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, e “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água”, de Jorge Amado.

No nº 13, de março de 1960, primeiro aniversário da revista, “Sr.” tornou-se “Senhor” -concessão aos jornaleiros, que, acredite, até então não sabiam como chamá-la. Mas, a partir do número seguinte, Scliar, numa medida quase suicida, ousou abolir as chamadas de capa -e logo em “Senhor”, que tinha tantos nomes a “chamar”. Atraído por novos desafios, Scliar deixou a revista no nº 18 e foi sucedido com naturalidade por Glauco Rodrigues na chefia do departamento de arte. E, já no número seguinte, as chamadas de capa voltaram -a sugerir um choque entre Scliar e Glauco por causa delas.

Infelizmente, naquele número os nomes de Jaguar, Bea Feitler e Caio Mourão também saíram do expediente. Mas tanto Bea (então namorada de Paulo Francis) quanto Jaguar continuaram a colaborar com ilustrações, cartuns e eventuais capas. O diretor de arte Michel Burton surgiu em cena e já fez a capa do nº 19. Glauco, por sua vez, deixou “Senhor” no nº 25, comemorativo do segundo aniversário, e cedeu o lugar a Burton, mas continuou a colaborar e produzir capas. Ou seja, os que saíam passavam o bastão aos sucessores e não se acusavam abalos.

ADMINISTRAÇÃO

O mesmo não se pode dizer das súbitas mudanças administrativas que a revista sofreu naquele período. No nº 25, de março de 1961, o nome de Sergio Waissman desapareceu do expediente como diretor-gerente da Editora Senhor. No nº 27, de maio, Ivan Meira deixou a chefia do comercial. E, finalmente, no nº 30, de agosto, Nahum Sirotsky transmitiu o cargo de editor-redator-chefe a Odylo Costa, filho. Com a saída de Nahum, era o pai se separando do filho, a mão se separando do braço. E por quê?

Nahum despediu-se dos leitores com um editorial explicando que, como a revista fora vendida a “outro grupo”, queria deixar o caminho livre para a orientação dos novos proprietários -por mais que o tivessem “instado a continuar”. O “outro grupo” era a LTB, Listas Telefônicas Brasileiras, controlada por Gilberto Huber, dono também da AGGS, gráfica que editava a revista e que, na prática, se tornava a proprietária da Editora Senhor.

Aos íntimos, Nahum dizia que só teria permanecido nas mesmas condições de liberdade e independência que lhe eram garantidas pelos irmãos Waissman -e, segundo ele, esse não parecia ser o caso com Huber. Seja como for, se houve alguma mudança política ou editorial na linha da revista, ela não ficou clara -mesmo porque Paulo Francis e Newton Rodrigues continuaram a assinar como editores, só que agora sob Odylo. O que houve foi uma queda constante da publicidade, provocada mais pela instabilidade da vida política brasileira do que por uma queda de qualidade da revista.

Essa instabilidade se iniciou com a renúncia do presidente Jânio Quadros naquele mesmo agosto de 1961, prosseguiu com as incertezas em torno da posse do vice-presidente João Goulart, com o curto e opaco período do regime parlamentarista, e culminou na explosiva volta do presidencialismo, em que o país começou a ser sacudido pela intensa agitação nos sindicatos e no campo. Com o país à sombra de uma possível guerra civil, a ideia de uma revista tão cara e requintada parecia realmente fora de lugar. A saída de Ivan Meira também contribuiu para a queda da publicidade.

O nº 36, de fevereiro de 1962, tinha uma linda capa (“Ele vem aí”, referindo-se ao Carnaval), mas apenas três páginas de anúncios. A situação era crítica. E quase toda a revista, cada vez mais magrinha, saía agora em preto e branco. “Senhor” parecia terminal. No mês seguinte -março, terceiro aniversário de “Senhor”, Odylo caiu. Seu reinado durou apenas sete meses. Foi substituído pelo poeta e artista gráfico Reynaldo Jardim (ex-“Suplemento Dominical” do “JB”) como diretor responsável.

Paulo Francis e Newton Rodrigues continuaram como editores, mas, com Reynaldo à testa, não havia lugar para um diretor de arte, donde Michel Burton também saiu. Em abril, Jaguar foi convidado a concentrar cartuns, artigos e “faits-divers” de humor numa seção dentro da revista, “O Jacaré”.

Em maio, “Senhor” voltou a ter cores, mas a publicidade continuou inexpressiva. Numa quase apelação, as moças que a revista fotografava começaram a se despir um pouco mais -nem tanto como as “Certinhas do Lalau”, na “Última Hora”, mas já se vislumbravam alguns seios. Até que, em julho, a AGGS repassou a revista e a editora (de graça, mas com todas as dívidas) a uma corajosa dupla que se dispôs a assumi-las: o próprio Reynaldo Jardim e seu velho amigo, o bem-sucedido publicitário Edeson Coelho. E, com o prestígio de Edeson no meio, os anúncios voltaram em alto estilo.

Paulo Francis e Newton Rodrigues se afastaram no número seguinte, o 43, de setembro de 1962, e, com a saída de Francis, “Senhor” perdeu o último membro de seu núcleo inicial.

GRANDE FASE

Foi, de novo, uma grande fase para a revista, com média de 30 a 40 colaboradores por mês, mais de 20 páginas de publicidade e alguns números memoráveis, como o gordo 50-51, datado de abril-maio de 1963, com 28 páginas de textos (contra e a favor) sobre a bossa nova.

Mas os prejuízos acumulados eram muitos, e aquele foi também o último número composto e impresso na AGGS -como se nem ela, uma gráfica “amiga”, continuasse disposta a bancar as dificuldades da revista. O fato de Edeson e Reynaldo serem obrigados a juntar dois números em um só revela um quadro de dívidas não saldadas, fornecedores impacientes e papagaios levantados junto a banqueiros lenientes, suficientes para rodar a revista mais uma vez. Era, de novo, a ameaça do fim.

RISCO

E assim “Senhor” se arrastou até o último número, o 59, de janeiro de 1964. O Brasil de 1963/64 não era um cenário que estimulasse empreitadas de risco -e nada mais arriscado que uma revista, com seus compromissos fixos (papel, tinta, impostos, colaboradores) e receita flutuante (anúncios e venda avulsa). O país inteiro se tornara um risco -todo mundo sabia. Quando os militares tomaram o poder, a 31 de março de 1964, “Senhor” já não estava ali para testemunhar.

E, nos anos imediatamente seguintes, os senhores de colarinho branco que compunham o seu público viram-se engolfados pelo processo de juvenilização galopante que tomou o planeta, com o iê-iê-iê, os hippies, os cabelos sobre a gola e, depois, sobre os ombros. De certa maneira, “Senhor” acabou ao mesmo tempo que seu próprio mundo.

Vista de hoje, seus defeitos ficaram tão aparentes quanto suas qualidades. E os primeiros são mais de produção gráfica -a maioria de seus responsáveis eram homens de grande criatividade plástica, mas com pouca tarimba em revistas. Em busca da originalidade, cometiam-se pecadilhos impensáveis, digamos, na já estabelecida revista “Manchete”, como títulos na página errada, ilustrações que pareciam ter saltado para fora do texto, algum desacerto na tipologia e, o pior de todos, às vezes páginas e páginas com uma massa de texto.

PALAVRA

Mas aquele ainda era o mundo da palavra, é bom lembrar. Os leitores não recuavam diante de uma página de texto apertado, fosse no jornal ou na revista. Na verdade, quando se encontrou, “Senhor” (assim como o novo “Jornal do Brasil”, comandado por Janio de Freitas) tornou-se justamente um dos veículos que vieram para oxigenar a imprensa, com o uso generoso da fotografia e do espaço em branco.

A fórmula gráfica de “Senhor” variou de acordo com a oscilação comercial da revista. Em certa fase, as capas estilo obra de arte (muitas a cargo de Glauco Rodrigues) foram trocadas por capas mais fotográficas, algumas destacando uma mulher seminua. Era o desespero de tentar recuperar na venda avulsa o que estava faltando na publicidade. Mas aquele não era o público de “Senhor” e, eventualmente, ela voltou à sua antiga e gloriosa sofisticação.

Sofisticação esta que nunca foi deixada de lado em matéria de textos -e de que o livro “O Melhor da Senhor” oferece robusta amostra. Amostra que não se pretende única -outros livros como este, equivalentes em quantidade e qualidade do material, seriam possíveis, se se tivessem conseguido todas as autorizações desejadas.

Por diferentes motivos, não pudemos ter Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues ou James Thurber. Mas temos Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector e muitos dos outros que tornaram “Senhor” uma sra. revista. E nunca se fez outra igual.

*Publicado na Folha de São Paulo

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